sexta-feira, 20 de junho de 2025

Fusca: o Brasil não seria o mesmo sem ele

Que o Brasil às vezes é difícil de explicar para os estrangeiros, creio que a essa altura do campeonato ninguém tenha mais dúvidas, e certamente um aspecto que salta aos olhos de muitos quando conhecem o Brasil é o apreço da maior parte dos brasileiros pelo Fusca. Ter sido o único país onde o modelo teve um breve retorno às linhas de produção entre '93 e '96 por motivações políticas, após o ciclo original de fabricação brasileira que se estendeu de '59 a '86, já seria algo digno de nota pelo contexto de reabertura do mercado brasileiro aos automóveis importados e a consolidação do segmento de carros "populares" junto à população urbana, por mais que o Brasil tenha dimensões continentais e em muitas regiões mais interioranas ainda fossem comuns condições de rodagem árduas e a princípio desconhecidas por aqueles que estavam "encantados pelo macarrão Barilla e pela gravata-borboleta" como bem disse o Alexander Gromow em uma entrevista para a antiga TV Jovem Pan. Mesmo parecendo demasiado antigo para o contexto da época, além do mais que em outros países com condições econômicas e sociais parecidas com as nossas o lugar cativo da Volkswagen no segmento de veículos populares já estava dominado principalmente por fabricantes japoneses e também a ascensão dos coreanos, o Fusca seguia relevante no Brasil a ponto do então presidente Itamar Franco propor uma volta às linhas de produção e equiparar motores até 1.6L arrefecidos a ar e 1.0L arrefecidos a líquido para fins tributários.

A bem da verdade, assim como na atualidade uma parte do público aos quais os carros "populares" são direcionados olha com alguma simpatia para as motocicletas de pequena cilindrada em função do menor custo de aquisição e de uma manutenção mais simples, o Fusca também foi acompanhado pela moda das motonetas de origem italiana como a Lambretta cuja fabricação brasileira foi iniciada já em '55 e portanto antecedeu até a implementação do Grupo Executivo da Indústria Automobilísitca (GEIA) pelo governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira que proporcionou condições mais propícias a carros e utilitários de configuração mais tradicional. Lembrando que triciclos utilitários derivados de motonetas como a Lambretta e a concorrente Vespa foram fundamentais na reconstrução da Itália no pós-guerra, e posteriormente viriam a ser de suma importância para a motorização em países como a Índia alcançasse um resultado mais expressivo cuja influência perdura até a atualidade, e por incrível que pareça vem se expandindo em décadas recentes para outras regiões mais por influência indiana que italiana, chegaria a ser curioso tais modelos terem sido mais voltados a aplicações estritamente utilitárias de cargas leves no Brasil. Naturalmente uma percepção de carros como inerentemente mais prestigiosos que motocicletas foi tão fundamental para até um modelo de proposta austera como o Fusca ter sido mais destacado tanto como desejável aos olhos do público generalista quanto alinhado a uma política desenvolvimentista do governo JK, e por isso os triciclos hoje são tratados como mera excentricidade que alguns brasileiros só se deram conta da existência em 2009 quando a Globo exibiu a novela Caminho das Índias...
Antes que questionem se eu bebi daquele álcool de cereais puro destinado ao uso farmacêutico por fazer uma comparação entre o Fusca e um triciclo derivado da Lambretta, vale destacar que o uso do mesmo motor das motonetas e uma relação de transmissão mais curta para lidar com o peso restringiam demais a velocidade máxima, circunstância que acabaria sendo indesejável para um veículo que se propusesse a ser o único de muitas famílias e eventualmente precisasse disputar espaço nas ainda precárias rodovias da época com os primeiros caminhões de fabricação nacional durante viagens, sendo portanto previsível que tenha prevalecido o uso essencialmente urbano no transporte de cargas leves nas raras tentativas de firmar essa categoria de veículos no Brasil. Talvez a simplicidade do motor 2-tempos ainda sugerisse que algumas modificações para melhorar o desempenho seriam fáceis e de custo quase simbólico, bem como a possibilidade de apenas instalar uma capota de lona como se usava no Jeep CJ-5 e nas primeiras pick-ups nacionais para fazer um triciclo ficar próximo a um pau-de-arara miniaturizado, com uma maior leniência quanto ao transporte de passageiros no compartimento de carga de veículos que só teve fim em '98 com a entrada do atual Código de Trânsito em vigor, mas naturalmente essa possibilidade só fosse levada a sério caso o Fusca nunca tivesse vindo ao Brasil e os fabricantes de origem americana como a Ford e a General Motors tivessem permanecido mais voltadas a oferecer somente enormes sedãs full-size que acabavam ficando caros demais para alcançar um público mais expressivo e fazendo uma economia porca ao concentrar a produção de motores só naqueles que pudessem servir tanto a um carro grande quanto a um caminhão pequeno ou médio. Por mais que a proposta daqueles triciclos utilitários italianos baseados nas motonetas ainda me agrade, e até o enquadramento deles como análogos a uma motocicleta viabilize a maior leniência quanto às normas de emissões e de segurança que hoje viabiliza modelos de fabricação indiana alcançarem públicos mais austeros em outros países "emergentes" como as Filipinas ou até a nossa vizinha Colômbia, pode-se afirmar sem medo de errar que a importância até no âmbito cultural do Fusca no Brasil perpetua uma rejeição do público generalista aos triciclos.

Também seria errado ignorar a presença da Kombi que, tanto por usar o mesmo motor do Fusca quanto pelo aproveitamento de espaço em proporção às dimensões externas, deu à Volkswagen uma vantagem no mercado de utilitários que só foi desafiada com a chegada de vans coreanas na década de '90, tendo atendido às mais variadas demandas em usos estritamente profissionais e ainda servido como veículo familiar em alguns casos. Oferecendo uma melhor manobrabilidade em espaços exíguos, característica que viria a ser de suma importância à medida que o Brasil passava por uma intensa urbanização com o pós-guerra e uma volta de grandes ondas de imigração européia e asiática que se estendeu até o Milagre Econômico Brasileiro no regime militar, mas preservando uma distribuição de peso entre os eixos que proporcionava melhor capacidade de transposição de terrenos bravios em diferentes condições de carga mesmo com tração traseira simples, exatamente em função do motor traseiro, a Kombi ainda hoje é uma referência tal qual o Fusca, e mesmo que a intrusão do compartimento do motor na área de carga possa ser tratada como desvantagem em aplicações especializadas como ambulâncias ou viaturas de polícia vale destacar que a própria Volkswagen chegou a alegar em peças publicitárias que a abertura lateral para acesso ao salão traseiro voltada para a calçada (considerando o tráfego no Brasil se dar pela mão francesa) seria mais eficiente que acomodar cargas pela parte traseira como nas pick-ups de origem predominantemente americana que antes reinavam entre os utilitários no mercado brasileiro, e apesar de ter permanecido com uma tampa traseira demasiado estreita até o ano-modelo '96 também chegou a ser usada até como ambulância e viatura de polícia em versões adaptadas mantendo a garantia de fábrica. A Kombi teve a fabricação no Brasil iniciada em '57 e portanto antes do próprio Fusca, e encerrada só em 2013 sob alegações de incompatibilidade com a obrigatoriedade de airbag duplo e freios ABS a partir de 2014, mas de qualquer jeito seria nula qualquer probabilidade de ter existido a Kombi sem que o Fusca a tivesse antecedido e dado origem à própria Volkswagen ainda na Alemanha...

Por mais que o Fusca seja praticamente impossível de ter apresentado um efetivo sucessor sob diversas perspectivas, ao contrário da Kombi que exerceu certa influência em gerações posteriores de utilitários mesmo que substituíssem a configuração de motor traseiro por outras mais conservadoras com o motor dianteiro e tração traseira ou até motor e tração dianteiros, possivelmente essa singularidade favoreça o simbolismo do Fusca permanecer tão indissociável de um período de modernização do Brasil que ainda ecoa em alguns momentos e aspectos da cultura contemporânea. O acesso a veículos com projeto mais moderno é incapaz de apagar o legado do Fusca como primeiro carro a ter sucesso com uma proposta popular no Brasil, e fortemente associado ao Brasil mesmo sendo um projeto originalmente alemão que também exerceu uma influência comparável no México onde foi fabricado de '67 a 2003 e encerrando a produção mundial do Fusca. Enfim, embora alguns questionem os méritos próprios do Fusca no âmbito técnico, bem como uma aparente letargia dos fabricantes japoneses que foram os primeiros a desafiar na década de '70 aquela hegemonia mundial que a Volkswagen tinha no mercado de veículos compactos, o Brasil certamente não seria o mesmo sem o Fusca.

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