sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Ainda haveria espaço para um Fusca 0km no mercado brasileiro?

Não se pode negar que o Fusca é do tipo ame-ou-odeie, sendo impossível ficar indiferente diante desse verdadeiro ícone histórico. Ainda muito apreciado principalmente em zonas rurais devido à capacidade de incursão off-road que não foi igualada pelas gerações de carros "populares" que o seguiram, apesar de manter entusiastas fiéis também nas cidades grandes, o modelo é apontado por detratores como o símbolo do atraso tecnológico que se instalou no Brasil e tem impactos até hoje. Mas considerando as condições de rodagem severas ainda muito comuns não só no interior do país mas também nas periferias de regiões metropolitanas, ainda haveria algum espaço no mercado automotivo brasileiro para um veículo como o Fusca?

Naturalmente o motor refrigerado a ar, que por sua vez já é uma outra obra-prima, seria um empecilho para seguir enquadrado nas normas de emissões a partir de 2012 quando a Euro-5 passou a vigorar no Brasil, além de ser de fato mais dependente do próprio combustível para auxiliar na refrigeração quando comparado a concorrentes já dotados da refrigeração líquida. A maior irregularidade da marcha-lenta logo após a partida a frio é outro ponto crítico, principalmente se considerarmos um eventual uso do etanol como combustível, tendo em vista que depende basicamente do pequeno radiador de óleo para proporcionar algum controle de temperatura mais preciso. Por outro lado, talvez a complexidade inerente a essa alteração pudesse ser a pá de cal diante de uma parte mais expressiva do público que ainda pudesse demonstrar algum interesse num Fusca 0km. A maior dificuldade para integrar a grade de um radiador às linhas originais do Fusca também seria algo bem mais desafiador do que foi para a Transporter T3 (a "Kombi quadrada" que nunca foi oferecida regularmente no mercado local) durante a transição da refrigeração a ar para o Wasserboxer.
A bem da verdade, as características mais relevantes do Wasserboxer quando comparado aos motores de 4 e 5 cilindros em linha usados em versões sul-africanas da T3 eram não só a posição horizontal que permitia manter uma menor intrusão do compartimento do motor na área de carga mas também a permanência do comando de válvulas no bloco com sincronização direta por engrenagens. Fabricado somente entre '82 e '92, em versões de 1.9L e 2.1L e não sendo usado em nenhum outro modelo da Volkswagen, seria muito improvável que pudesse ser produzido justamente no Brasil mesmo após ser descontinuado na Europa, e solenemente ignorado na África do Sul em função da escala de produção dos motores de 5 cilindros compartilhados com a linha da Audi à época e o EA827 "AP" 1.8 para as versões mais simples e que também chegou a ser usado na Kombi brasileira quando era exportada para o México.
O uso posterior do motor EA111 em versão de 1.4L "flex" a gasolina e etanol nas últimas versões da Kombi destinadas ao mercado brasileiro, mantendo a aparência das 1.8 de especificação mexicana, é convidativo à reflexão sobre outro aspecto que poderia ser mais relevante para a grande maioria dos consumidores brasileiros a partir da década de '90. Como a carcaça do câmbio de 4 marchas que foi usado na Kombi até o fim da produção era a mesma também aplicada a modelos de motor dianteiro como o Santana, mudando apenas o lado em que era montada a coroa do diferencial para inverter o sentido de rotação de saída, e tendo em vista que modelos Volkswagen e Audi antigos de motor longitudinal contaram também com a opção pelo câmbio de 5 marchas (inclusive a já mencionada T3), ao menos teoricamente não deveria haver nenhum empecilho para ser oferecido também na Kombi e eventualmente até no Fusca, aproveitando a economia de escala com o restante da linha.

O breve ciclo do "Fusca Itamar", que teve a produção reiniciada entre '93 e '96 por sugestão do então presidente Itamar Franco, tinha como justificativa incentivar a produção de carros "populares" ainda que o motor de 1.6L refrigerado a ar fugisse da definição inicial de uma faixa de cilindrada até 1.0L para a concessão de incentivos fiscais, e acabou tornando-se alvo de questionamentos quanto a talvez ter feito mais sentido montar esse mesmo em substituição ao CHT/AE de refrigeração líquida usado no Gol 1000. De fato, considerando precedentes como o fato do motor boxer já haver equipado outras versões do Gol durante a década de '80, poderia até ser mais conveniente para a Volkswagen fazê-lo ao invés de relançar o Fusca, considerando também outros aspectos como a acessibilidade mais fácil do bagageiro do Gol não só por dentro mas também por fora. Mas relembrando o que disse à época o publicitário Marcello Serpa, encarregado das propagandas de relançamento do Fusca, o aparente fracasso comercial nas grandes metrópoles era ofuscado pelo interior do país onde ofereceria melhor desempenho em condições de terreno severas comparado ao Gol e outros "populares" da época.

A bem da verdade, um ponto que aparenta ser até mais difícil de conciliar que o controle de emissões é o enquadramento em normas de segurança como a obrigatoriedade de airbag e freios ABS em vigor no Brasil desde 2014. Se por um lado o recurso ao chassi separado da carroceria é até mais propício a atualizações do que pudesse parecer à primeira vista, incluindo desde a substituição dos sistemas de suspensão por outros mais modernos que proporcionariam não só mais estabilidade mas até mesmo permitindo aumentar a capacidade do bagageiro dianteiro ou do tanque de combustível que poderia ser útil para compensar o maior consumo ao rodar no etanol, por outro a instalação de airbags apenas para cumprir a legislação mas sem contar com reforços estruturais seria como enxugar gelo. Mas como o brasileiro médio não tem demonstrado muita preocupação nesse sentido, o Fusca não teria maiores dificuldades para continuar atendendo a quem se dispusesse a comprar um caso tivesse permanecido em linha. Já no tocante aos freios ABS, cuja suposta incompatibilidade a plataformas muito antigas figurou como um dos pretextos para o encerramento da produção da Kombi no final de 2013, a presença do dispositivo até em motos como a Honda XRE 190 (nesse caso só na roda dianteira mesmo) leva a crer que essa alegação efetivamente não procedia. E mediante o alto grau de integração entre os sistemas eletrônicos em veículos novos, não é de se duvidar que até controles de tração e estabilidade fossem viáveis num Fusca que viesse a ser adaptado com injeção eletrônica e freios ABS...

Diga-se de passagem, hoje o tipo de veículo que até pode se aproximar mais de algumas das razões que fizeram do Fusca um sucesso são justamente motocicletas de pequena cilindrada, com destaque para a Honda CG. Recorrendo a side-cars, é até possível fazer com que as capacidades de carga e/ou passageiros se aproximem ao menos em parte dos parâmetros de um automóvel compacto, embora a viabilidade de se adaptar tração suplementar num side-car para assegurar que consiga percorrer um trecho escorregadio ou não-pavimentado e assim atender de forma mais satisfatória a moradores de áreas rurais seja questionável. Naturalmente, há de se reconhecer que as motos e side-cars deixam a desejar no tocante à proteção dos passageiros e bagagens contra as intempéries, e a segurança em caso de impactos também não é lá grande coisa...

Com a economia deixando a desejar e a infraestrutura rodoviária cada vez mais sucateada, até certo ponto o Brasil poderia ter continuado bem servido pelo Fusca até os dias atuais. Ainda que realmente seja um projeto obsoleto, e a configuração de carroceria não seja tão atraente diante de veículos mais modernos e práticos para o uso cotidiano, seria no mínimo estúpido tentar desmerecer a importância que teve como um modelo pioneiro dentre os automóveis de proposta popular. Contemplando as mais distintas realidades regionais desse país de dimensões continentais com a resiliência necessária para atender às mais duras condições de rodagem a custos de aquisição e manutenção inferiores aos de utilitários com tração 4X4, o Fusca prova que ainda teria espaço no mercado brasileiro.

domingo, 19 de agosto de 2018

Rápida observação sobre a adaptabilidade de motores de moto em carros

Com muitos exemplos de automóveis adaptados com motor de moto disponíveis no YouTube, e das motos transformadas em triciclo utilitário que podem ser vistas Brasil afora, em alguns momentos e
pode parecer tentadora a possibilidade de adaptar um motor menor (e muito mais leve) que de carros "populares" com o intuito de eventualmente economizar gasolina e também valer-se ou da farta oferta de peças de reposição para modelos como a Honda CG 125. Naturalmente, diversos fatores influem no rendimento de um motor, como o peso total e a aerodinâmica dos veículos aos quais se apliquem, além das faixas de rotação de potência e torque e como as relações de marcha proporcionem um bom aproveitamento em variadas condições de tráfego. Pode até não ser muito fácil obter um desempenho ao menos próximo ao que o motor original do veículo a ser adaptado ofereça, especialmente quando a diferença de cilindrada seja muito exacerbada.
Não é incomum que os motores de moto apresentem faixas úteis de rotação mais largas comparadas à de um motor automotivo, o que pode até viabilizar adaptações desde que seja levado em consideração o efeito das relações de marchas e diferencial para que a velocidade na roda fique mais parelha entre o veículo original e um que venha a ser repotenciado. É necessário, primeiramente, considerar que as relações de marcha representam quantas rotações do motor seriam necessárias para o eixo de saída do câmbio efetuar uma rotação completa, definição aplicável também ao diferencial no caso dos carros e à relação de coroa e pinhão normalmente usada em motos com transmissão final por corrente ou por correia. Logo, uma relação numericamente mais alta como 3,43:1 será mais curta (ou "reduzida") que outra numericamente menor como 2,83:1, que são definidas pela divisão entre os números de dentes das engrenagens onde a força motriz entra no sistema pelo número de dentes na última engrenagem antes que se aplique a rotação resultante às rodas, multiplicando o torque efetivo.
Se por um lado o motor de uma motocicleta utilitária de 125cc não me pareceria apto a proporcionar desempenho aceitável nem mesmo a um carro "popular", visto que também se observa uma eventual necessidade de percorrer trechos rodoviários num veículo que frequentemente ainda é o único do qual dispõe um núcleo familiar, por outro o motor de uma moto média ainda que com cilindrada inferior à da grande maioria dos automóveis se mostraria menos deficiente nesse aspecto. Não seria totalmente descabido, por exemplo, que alguém chegasse à conclusão de que o motor de uma moto Honda CB 500 do modelo antigo seja "suficiente" para um Opel/Chevrolet Corsa em substituição ao motor de 1.0L de 8 válvulas e baixa compressão original, levando em conta a potência declarada apenas 10% menor na moto (54cv contra 60cv), ainda que uma análise mais profunda com relação ao torque e à faixa de rotação se faça necessária. Nesse caso, em que pesem outras diferenças como a quantidade de válvulas por cilindro, o suprimento de combustível (2 carburadores na CB 500 e injeção eletrônica multiponto no Corsa), além do torque por volta de 43% menor na moto, seria possível compensar por meio de uma relação de transmissão final mais curta de modo a manter uma velocidade de cruzeiro compatível com o tráfego tanto urbano quanto rodoviário mesmo que a velocidade máxima possa não se manter no mesmo patamar original. Já a economia de combustível, considerando a quantidade de ciclos de combustão ao se manter regimes de rotação mais elevados para alcançar uma determinada velocidade com um motor com praticamente a metade da cilindrada do original, possa não ser sempre favorecida.

Mesmo um carro não tão pequeno, como um Chevrolet Cruze, também poderia de forma até certo ponto surpreendente ao menos funcionar caso fosse adaptado com motor de moto no lugar do original por alguma razão. Enquanto no Brasil a 1ª geração do modelo foi oferecida exclusivamente com o motor Ecotec de 1.8L e câmbios de 6 marchas tanto no manual quanto no automático, em outros mercados dispôs de outras opções de motor como um Ecotec de 1.6L que até pouco tempo atrás ainda era o único disponível em alguns mercados da África e do sudeste asiático onde se comercializava o modelo feito na Tailândia. Infelizmente fica difícil encontrar valores de potência e torque informados com a necessária precisão para fazer um cálculo de quanta redução intermediária se faria necessária para que ao menos na roda o pico de torque seja aplicado numa rotação mais parelha. Considerando os parâmetros declarados em Angola, onde o Cruze tem listado um torque de 155 Nm a 4200 RPM, caso fosse economicamente viável separar o motor de uma moto como a Honda CB 600 F Hornet de 2ª geração do câmbio original da mesma para que fosse usado só o do carro, seria possível por meio de uma redução intermediária de 2,5:1 converter o torque de 63,5 Nm a 10500 RPM para algo como 158,75 Nm a 4200 RPM. Como já seria viável manter velocidades de cruzeiro compatíveis com o tráfego tanto na cidade quanto na estrada (1,875:1), uma relação mais alta para compensar na roda a diferença nas rotações de picos de potência (eventualmente sacrificando a multiplicação do torque) que se situam a 12000 RPM na Hornet (102cv) e 6400 RPM no Cruze (124cv), acabaria sendo pouco significativa para efeitos práticos.

Algumas motos de alta cilindrada, como as Harley-Davidson "Big Twin", costumam apresentar faixas de rotação mais próximas às observadas em automóveis, e já seriam suficientes para movimentar sem maiores dificuldades um carro da mesma faixa de cilindrada. Apesar da potência e torque específicos menores, bem como das faixas de rotação dos respectivos picos de potência e torque também serem mais baixos numa comparação a motores automotivos modernos, o Twin Cam 96 que equipou a Harley-Davidson FXD Dyna Super Glide ainda seria suficiente para movimentar um carro do porte do Renault Mégane que no Brasil teve entre os motores oferecidos o K4M de 1.6L. As maiores dificuldades seriam o suprimento de força para acessórios como um compressor de ar condicionado sem fazer muita gambiarra para adaptar uma polia de acessórios, bem como uma provisão de aquecimento para a cabine tendo em vista que as "Big Twin" ainda recorrem à refrigeração a ar ao invés da refrigeração líquida que se tornou padrão na indústria automobilística há décadas. Vale destacar também as discrepâncias nas regulamentações de emissões entre motocicletas e automóveis, que de certa forma se tornariam um empecilho à eventual aplicabilidade de motores "poluidores" de origem motociclística em carros.

Outros dilemas de ordem técnica como a falta que a ré possa fazer numa moto, resolvida em triciclos por meio do uso de uma caixa de reversão, também são evidentes mesmo naqueles momentos em que uma gambiarra possa parecer a última salvação para um "sucatão" em estado precário, enquanto uma expectativa por redução de consumo de combustível e uso menos intenso de recursos naturais em função da menor quantidade de componentes que um motor de moto pequena tenha e vá precisar de reposição ao longo da vida útil operacional comparado a um carro possam não se concretizar. Por mais que o princípio básico de operação aplicado a motores motociclísticos e automobilísticos seja essencialmente o mesmo, diferenças conceituais entre esses tipos de veículo podem requerer soluções diferenciadas para uma melhor adequação às respectivas propostas. Enfim, mesmo que esteja longe de ser tecnicamente impossível, nem sempre a adaptação de motor de moto em carros é recomendável.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Austin 7, um clássico que marcou época

Dentre as tentativas de se fazer um carro popular no início do século passado, não restam dúvidas que o Austin 7 (geralmente mencionado como "seven" mesmo em países onde o inglês não é a língua oficial) foi um dos mais destacados. Lançado em 1922 e produzido até 1939, sempre com motor de 4 cilindros com válvulas laterais inicialmente com 696cc e 7.2hp medidos por um padrão do Royal Automobile Club (RAC) à época, ampliado já em 1923 para 747cc e 10.5hp RAC, recorria a soluções como a refrigeração líquida por termo-sifão e o acionamento do dínamo pelo mesmo conjunto de engrenagens encarregado da sincronização do comando de válvulas para manter-se simples. O câmbio, inicialmente de 3 marchas, passou para 4 em 1932.

Foi também produzido sob licença em países como a Alemanha pela empresa Dixi posteriormente incorporada à BMW, American Austin que era apenas licenciada nos Estados Unidos pela matriz britânica e depois acabou mudando de nome para dar origem à American Bantam, e no Japão a Datsun também iniciou a trajetória que deu origem à Nissan a partir de modelos derivados do Seven.

Com versões de 2 ou 4 lugares, e pesando cerca de 390kg, o modelo se destacava por ter proporções mais semelhantes às de carros maiores numa comparação às motos com side-car e aos "cyclecars" com mecânica de origem motociclística que eram relativamente comuns à época em alguns países europeus. O exemplar das fotos, um Tourer de 1929, esteve exposto no Iguatemi de Porto Alegre em 2008 ou 2009, não lembro ao certo a data.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Uma rápida reflexão sobre Josef Ganz e o Fusca

A história do Fusca sempre foi rodeada de polêmicas, desde o financiamento do projeto a cargo da ditadura nacional-socialista até acusações de plágio feitas pela Tatra e que foram resolvidas extra-judicialmente em 1967 mediante o pagamento de 3 milhões de marcos alemães por parte da Volkswagen. Curiosamente, no dia 26 de julho do mesmo ano que as duas fabricantes famosas pelos respectivos motores refrigerados a ar entravam num entendimento, faleceu na Austrália o engenheiro-mecânico judeu húngaro Josef Ganz, que se tornou famoso na Alemanha durante o período entre-guerras como editor-chefe da extinta revista automobilística Motor-Kritik e também esteve envolvido com projetos de automóveis "populares" de pouco êxito comercial como o Bungartz Butz e o Standard Superior. Naturalmente a história de um judeu que desenvolveu um "Volkswagen" antes do lançamento do Fusca, e sem o apoio institucional do qual Ferdinand Porsche passou a dispor em 1934, é um bom pano de fundo para teorias de conspiração.

O protótipo Maikäfer que Josef Ganz desenvolveu em 1931 para a fabricante Adler já incorporava o layout básico de suspensão independente nas 4 rodas e chassi tubular tipo "espinha dorsal" que hoje é apontado como um dos principais pivôs das alegações de plágio, e permaneceu com o projetista após a empresa optar pelo desenvolvimento de modelos de tração dianteira. O caminho esteve então livre para contatos entre Ganz e o fabricante de motocicletas Willhelm Gutbrod em 1932, culminando com o lançamento do Standard Superior em 1933 que foi o primeiro modelo a usar a denominação "Volkswagen" em peças publicitárias. Vale destacar a sonoridade melhor desse nome em comparação a "Volksauto" que era usados nas primeiras referências oficiais a um projeto de carro "popular" que seria instituído para fins de propaganda da ditadura nazista. O precoce encerramento da produção  do Standard Superior em 1935, quando Josef Ganz já havia saído da Alemanha nazista para se instalar na Suíça, ocorreu em meio a uma infundada alegação de quebra de patente apresentada pela Tatra e resolvida apenas em 1941 com um ganho de causa para Ganz que não deixava de ser surpreendente diante do cenário político alemão na época, embora seja pouco provável que tenha chegado a receber a compensação financeira e que os valores que lhe eram devidos tenham sido usurpados pelos nazistas como o foram muitas propriedades confiscadas de seus legítimos proprietários. Usando como justificativa uma suposta semelhança no sistema de transmissão, que no entanto não procedia tendo em vista que o Standard Superior usava uma carcaça inteiriça para motor e câmbio com transmissão direta sem diferencial para os semi-eixos oscilantes enquanto o projeto da Tatra era para o uso de motor dianteiro e transmissão final por eixo cardan. E apesar de serem empresas sediadas em países diferentes, não há de se descartar uma eventual interferência de Hitler e Goebbels junto à Tatra com a clara intenção de denegrir a reputação do engenheiro judeu e desencorajar eventuais tentativas de competir contra o Fusca.

Apesar do formato até bastante parecido entre o Fusca e o Standard Superior, que estavam de acordo com modismos duma época em que a aerodinâmica ganhava espaço na indústria automobilística, é necessário observar algumas diferenças sobretudo no layout mecânico. Enquanto a posição de motor traseiro em orientação longitudinal foi decisivo para que o Fusca conquistasse a fama de boa aptidão a condições de rodagem severas, os projetos desenvolvidos por Josef Ganz tinham motor central-traseiro montado logo à frente do eixo motriz em posição transversal. Outro aspecto muito relevante é a maior similaridade do motor 2-tempos bicilíndrico do Standard Superior com os que eram usados em motocicletas, enquanto no Fusca se observa muita semelhança com um motor aeronáutico que Ferdinand Porsche havia desenvolvido quando ainda trabalhava na Daimler-Benz. Tamanho e peso menores também eram muito evidentes no Standard Superior, o que acabava impondo limitações na acomodação de passageiros e bagagens de modo que a comparação mais justa seria às motocicletas com side-car que permaneciam exercendo função análoga à de um carro "popular" na Alemanha durante o período entre-guerras. Técnicas construtivas como o uso de madeira revestida com couro sintético para fazer a carroceria do Standard Superior, também aplicadas a uma infinidade de outros mirocarros e também alguns triciclos alemães durante o período entre-guerras, certamente são outra dificuldade em função da menor escala de produção em comparação à carroceria de aço estampado do Fusca.

Guardadas as devidas proporções, a comparação entre modelos com uma concepção tão distinta chega a lembrar vagamente a situação ocorrida no Brasil com o Gurgel BR-800 SL e posteriormente o Supermini, embora estes tenham concorrido por algum tempo com a concorrência dos fabricantes mais tradicionais antes que conchavos políticos eliminassem a Gurgel. Podemos começar observando o uso de materiais mais adequados à produção em pequena escala na carroceria mas que acabariam por encarecer demais caso o volume de vendas fosse mais expressivo, embora fosse usado no Gurgel o plástico reforçado com fibra de vidro ao invés da madeira e do couro sintético usados no Standard Superior. Em termos de chassi, ambos se destacavam por usar concepções que fugiam à regra geral de cada época, sendo que no Standard a "espinha dorsal" fazia contraponto aos chassis tipo escada enquanto no Gurgel uma space-frame tubular servia de alternativa aos monoblocos de aço estampado. No tocante aos motores, também merecia algum destaque o fato de ambos terem apenas 2 cilindros em contraste à predominância da configuração de 4 cilindros nos modelos compactos oferecidos por fabricantes tradicionais nos respectivos países em que pesasse o distanciamento histórico.

Embora a defesa entusiasmada de Josef Ganz por soluções como a suspensão independente nas 4 rodas com semi-eixos oscilantes na traseira e o chassi tipo "espinha dorsal" em artigos publicados na Motor-Kritik seja eventualmente ressaltada como evidência para teorias conspiratórias, é importante destacar a experiência de sucesso da Tatra com esse expediente e uma influência que teria exercido sobre o próprio Ganz para considerá-lo superior ao que se oferecia em maior escala na época. De fato, a perseguição nazista foi um fator decisivo para que a história caísse na obscuridade até que chamou a atenção do jornalista holandês Paul Schilperoord por volta de 2004 e deu origem a um livro lançado em 2009 sobre o tema. Enfim, por mais que tanto Josef Ganz quanto Ferdinand Porsche tivessem na prática um objetivo bastante parecido, e a chegada do Standard Superior ao mercado antes que o projeto do Fusca começasse oficialmente, as eventuais alegações de plágio abusam do sensacionalismo em torno da mancha negra do nazismo na história.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Fusca ou Citroën 2CV: qual projeto é de fato mais genial?

A popularidade do Fusca no Brasil dispensa maiores apresentações, e até a atualidade o modelo é reconhecido como um ícone no país, mas a hegemonia da Volkswagen em meio a um mercado pouco competitivo como foi o caso brasileiro até a década de '90 pode ter seus méritos questionados devido à falta de uma concorrência mais forte que marcava presença no exterior. Naturalmente, as condições de rodagem severas do país não seriam tão convidativas para alguns modelos que já foram projetados quando a reconstrução européia avançava a passos largos e que podiam se dar ao luxo de apostar numa vocação mais urbana e rodoviária, de modo que não seria possível abrir mão de uma aptidão off-road moderada para atender às necessidades de habitantes das zonas rurais e das periferias. Talvez o sucesso do Citroën 2CV na vizinha Argentina possa fomentar a discussão em torno de qual projeto possa ser considerado efetivamente mais genial.
A favor do 2CV, pode-se destacar até mesmo o motor. No exemplar das fotos, feito na Argentina já na fase em que o modelo era denominado oficialmente 3CV naquele país por usar o motor de 602cc, o desempenho pode não parecer espetacular para os padrões modernos mas, por incrível que pareça, é de uma simplicidade que o torna até mais fácil de cuidar que um motor de Fusca. Com só 2 cilindros, ambos horizontais como também o são os 4 cilindros do Fusca, havia uma menor quantidade de peças móveis, e como ambos os pistões atingiam os pontos mortos ao mesmo tempo apesar de operarem em fases distintas (enquanto o cilindro nº 1 estava na admissão o nº 2 estava no tempo de potência, e também alternavam-se os tempos de compressão e de escape) era possível dispensar o distribuidor ao usar uma ignição wasted-spark, que gerava centelha para ambos os cilindros simultaneamente. Esse tipo de ignição costuma ser mais comum em motos, dada a quantidade de cilindros usualmente menor e a possibilidade de sincronizar a ignição pelo movimento do virabrequim através do magneto sem precisar ocupar mais espaço ao redor do comando de válvulas nem acrescentar mais partes móveis. De fato, é um sistema questionável por conta de uma eventual redução da vida útil das velas, mas tê-las numa quantidade menor já fazia com que o custo de uma reposição não fosse tão mais pesado em comparação ao Fusca, isso para não falar numa menor sensibilidade a fatores ambientais como a umidade e o menor desgaste mecânico em comparação a um sistema dotado de distribuidor.
A ausência de juntas de cabeçote, característica comum a motores aeronáuticos com disposição de cilindros semelhante, é outra característica que proporciona facilidade de manutenção, bem como a ausência de um sistema termostático de desvio (bypass) do radiador de óleo. Se por um lado pode parecer problemático e dificultar o gerenciamento térmico do motor, por outro se tem uma válvula a menos para dar problemas que acarretem num eventual superaquecimento, sendo possível recorrer a um defletor removível como o usado nos aviões de instrução Aero Boero para desviar o ar de impacto ao operar em clima frio. O sistema de ventilação do cárter que gera vácuo também é interessante, tendo em vista que reduz a ocorrência de vazamento de óleo ao proporcionar um selo pneumático caso as juntas de cárter apresentem falha durante a operação. Embora o motor e tração dianteiros causem um contraste notável com o Fusca, que teve no motor e tração traseiros um forte argumento de vendas em função da percebida capacidade de incursão off-road quando comparado a modelos de motor dianteiro e tração traseira como o Chevette, o 2CV não passava tanto apuro em terreno não-pavimentado. A posição do motor também acabava facilitando o acesso ao bagageiro pelo lado de fora, e a carroceria de 4 portas fazia com que fosse ainda mais cômodo em comparação ao "chiqueirinho" do Fusca.
A presença pouco expressiva da Citroën no mercado brasileiro antes que as importações fossem restringidas em '76 fez com que os méritos do 2CV não fossem tão reconhecidos por aqui como foram na Argentina, onde até mesmo uma maior aproximação cultural com países europeus poderia ter fomentado a receptividade a modelos de concepção mecânica ainda mais minimalista que a do Fusca. O motor ainda mais modesto do 2CV poderia suscitar dúvidas quanto a uma aptidão a operar com sobrecarga, condição que pode parecer menos desafiadora para o Fusca, ainda que já estivesse apto a proporcionar desempenho satisfatório no uso cotidiano e eventuais viagens. Enfim, o tema é polêmico e pode suscitar conclusões mais passionais que objetivas, mas não seria justo ignorar aspectos nos quais o Citroën 2CV de certa forma se sobressaia diante do Fusca, e possa até ser visto como um projeto mais genial.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Toyota Yaris: rápida observação sobre os motores oferecidos no modelo brasileiro

O recente lançamento do Toyota Yaris no Brasil, já na 3ª geração mundial com uma clara divisão entre os modelos destinados a países desenvolvidos e a versão "emergente" que foi lançada no nosso país, não deixa de chamar a atenção por alguns aspectos. Não vale nem a pena entrar no mérito de um eventual fogo amigo contra o Etios, com o qual o modelo já convive em outros mercados como a África do Sul, além de haver uma situação semelhante com a Volkswagen que apesar de ter lançado a atual geração do Polo não eliminou o Gol como poderia parecer justificável. Já entre as opções de motorização, o posicionamento bastante conservador da Toyota me parece merecedor de destaque.

Apesar da tentativa de fazer do Yaris sino-tailandês um "compacto premium", algo que não foi possível forçar a barra com o Etios devido às evidências de um projeto voltado ao terceiro mundo, não deixa de soar surpreendente que a Toyota tenha aberto mão da possibilidade de oferecer um motor de 1.0L numa versão básica. Tendo em vista que essa opção já é oferecida tanto para o modelo mais sofisticado na Europa e no Japão quanto para o "emergente" em alguns países, não seria de todo impossível estender tal oferta ao Brasil caso não houvesse um evidente interesse em se desvencilhar do estereótipo de carro "popular" que essa faixa de cilindrada carrega. Portanto, sobram apenas os motores 1NR-FBE de 1.3L e 2NR-FBE de 1.5L também usados no Etios, mas com uma calibração para mais potência no Yaris.

A estratégia conservadora na escolha de motorizações não deixa de se destacar de forma negativa ao considerarmos que a Toyota perdeu uma oportunidade de trazer os motores 1NR-FKE e 2NR-FKE que emulam o ciclo Atkinson como se faz na maioria dos automóveis híbridos, de modo a favorecer a eficiência termodinâmica sem ter de lançar mão do turbo e da injeção direta como já está se tornando menos incomum entre concorrentes como o Volkswagen Polo que é hoje a referência do segmento. No entanto, é impossível ignorar que é uma aposta bastante segura, tendo em vista que o "toyoteiro" não costuma fazer muita questão do motor mais moderno e aposta na fama de indestrutível da marca. Também não deixa de merecer algum destaque a maior facilidade para converter um motor de injeção sequencial convencional para o gás natural em comparação a motores de injeção direta.

Não se pode negar que a Toyota hoje figura entre as empresas mais conservadoras no mercado automotivo brasileiro. Ainda que a marca seja vista com uma aura de alta tecnologia frequentemente associada ao Japão, e que o câmbio CVT com simulação de 7 marchas no modo sequencial faça jus a tal percepção, em matéria de motores é nítida a pouca disposição a uma maior ousadia. Enfim, seria injusto classificar o Yaris como medíocre tomando como referência os motores, que cumprem bem a função para a qual se destinam sem causar maiores dissabores a uma parcela ainda expressiva do público que permanece mais receptiva a motores de uma concepção relativamente simples.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Até que ponto seria realista apontar um sucessor para o Fusca?

Não é nenhuma novidade que o Fusca tornou-se um ícone no Brasil, e consolidou o conceito de carro "popular" antes que fosse desvirtuado pelo ex-presidente Fernando Collor de Melo quando passou a priorizar um limite de cilindrada em detrimento de outras características mais realistas de acordo com as condições de uso dos veículos no país. Hoje os segmentos de carros compactos e subcompactos estão muito mais disputados em comparação à época que o Fusca começava a dominar um mercado onde a concorrência vinha principalmente de modelos ingleses e franceses que estavam mais para uma miniatura dos carros maiores que para uma solução destinada especificamente a modelos de entrada, mas estão com uma maior similaridade técnica e já não há algum que se destaque numa proporção comparável à "revolução" provocada pelo Fusca em um país até então mais influenciado pelos carros americanos de porte mais avantajado e alguma complexidade mecânica que não deveria ser subestimada. Afinal, mesmo com suspensão independente nas 4 rodas que já se tornou incomum até em carros novos e válvulas no cabeçote que contrastavam com os motores "flathead" de válvulas laterais ainda muito usados em carros americanos até a década de '50, em pouco tempo o Fusca virou o jogo e se tornou a referência.

Como seria de se esperar, não foi uma batalha das mais fáceis tendo em vista que as "banheiras" de origem americana como o Mercury Eight ofereciam mais espaço e capacidade de carga, mas num país ainda essencialmente agrário o Fusca era beneficiado pelo motor traseiro, mais próximo ao eixo de tração e portanto favorecendo uma maior aptidão ao tráfego em terrenos mais rústicos que as ruas e estradas pavimentadas. A refrigeração a ar também se revelava um trunfo diante do que até então se oferecia no país, tendo em vista que na década de '50 nem se falava em aditivo de radiador para evitar a ebulição ou o congelamento da água em meio às temperaturas extremas durante a operação de um veículo. A ausência de um radiador que não fosse o de óleo, bem como de mangueiras e bomba d'água, já figurava como uma vantagem por reduzir os custos de manutenção. Embora hoje seja praticamente impossível cumprir as normas de emissões mantendo a refrigeração a ar num automóvel moderno, essa característica faz com que fique ainda mais difícil propor um substituto efetivo para o Fusca tendo em vista o velho mote publicitário postulando que "o ar não ferve nem congela". Claro, hoje há quem prefira adaptar um motor mais moderno e com refrigeração líquida num Fusca pelos mais variados motivos como um melhor desempenho ou economia de combustível, mas a refrigeração a ar permanece contando com entusiastas fervorosos.
A carroceria com duas portas, que no início foi também tratada como uma vantagem tendo em vista que requeria menos uso de graxa nas dobradiças e ao menos em teoria oferecendo mais resistência à torção quando comparada a uma com 4 portas, hoje seria considerada indesejável pela maior parte do público brasileiro. Não deixa de ser portanto interessante observar o contraste com o Citroën 2CV, que no Brasil foi inexpressivo mas foi talvez o concorrente de maior peso contra o Fusca em alguns dos principais mercados onde o automóvel passava por um processo de popularização semelhante, e que apesar de recorrer a motor e tração dianteiros como se vê em carros urbanóides modernos não deixava de oferecer uma aptidão razoável a condições de rodagem severas que poderia atender bem à população do interior ou de periferias com infraestrutura precária. De certa forma, o 2CV era ainda mais rústico e eventualmente possa ser reputado mais versátil que o Fusca caso consideremos a maior facilidade não só na acessibilidade de passageiros no banco traseiro mas também para acomodação de bagagens ou carga, e num outro momento histórico chegou a estar mais próximo de ter um "sucessor espiritual" efetivamente realista aproveitando o mesmo conjunto mecânico. Alguns fãs incondicionais do Fusca podem considerar descabida a comparação porque o Citroën 2CV usava um motor que chegou a ter menos da metade da cilindrada de um Fusca do mesmo ano de fabricação, mas as propostas de ambos eram muito semelhantes.

Aquele que pode ser tratado como o mais próximo de um efetivo "sucessor espiritual" para o Fusca foi o Gol quadrado, que apesar de recorrer à configuração de motor e tração dianteiros usava o bom e velho boxer quando foi lançado, mas só se tornou um sucesso de mercado quando aderiu a um motor de refrigeração líquida. A aparência mais de acordo com as aspirações do público urbano dos anos '80 não deixava de ter sua relevância no sucesso comercial do Gol, mas as condições brasileiras tanto no âmbito econômico e social quanto na precariedade da malha viária não deixavam de fomentar alguma desconfiança inicial diante de um veículo com uma concepção básica tão discrepante do que viria a ser substituído. Outra vez buscando um exemplo na Citroën visando estabelecer uma comparação equilibrada, a experiência devidamente consolidada da marca com a tração dianteira proporcionou uma transição muito mais suave para modelos então modernos e mais orientados a um público urbano que não se dispunha a abrir mão de um acabamento menos rústico, como podia ser observado no Visa que ofereceu tanto motores com 4 cilindros em linha e refrigeração líquida a gasolina ou diesel (caso do exemplar da foto abaixo) em posição transversal com câmbios de 4 ou 5 marchas quanto o boxer de 2 cilindros refrigerado a ar em posição longitudinal e com câmbio de 4 marchas como no 2CV.


Atendo-se novamente à linha Volkswagen, dentre os modelos atuais o up! é o que vem sendo tratado como o mais próximo de um sucessor para o Fusca tomando por referência o posicionamento como modelo de entrada na maioria dos mercados onde é comercializado, embora o modelo de produção em série tenha abandonado o motor traseiro que chegou a ser cogitado na fase de projeto. Mas como não teve no Brasil o sucesso comercial inicialmente esperado, acabou alçado à condição de "carro de nicho", enquanto as gerações atuais de Gol e Polo disputam mais facilmente a atenção de um público generalista. O tamanho compacto atrai o público urbano pela facilidade de estacionar, e a opção pelo motor TSI dotado de turbo e injeção direta mesmo passando longe de ser barata e facilitar a execução de reparos improvisados rendeu um destaque no tocante ao desempenho conciliado à economia de combustível, mas nem a versão pretensamente aventureira cross up! consegue inspirar a mesma confiança para uso severo que um Fusca transmite tanto original quanto modificado ao estilo "Baja Bug". E que não venham os fãs do up! dar sermão sobre segurança, ou fazer acalorados discursos em torno de quantas estrelas tenham sido obtidas nos testes do Latin NCAP, porque apesar desse tema ser relevante acaba agregando um custo que vem tornando o carro 0km uma perspectiva ainda mais distante para uma parte considerável do público brasileiro.

A bem da verdade, como o Fusca usava chassi separado da carroceria, a mesma facilidade observada para se fazer alterações de carroceria sem que a rigidez estrutural fosse totalmente comprometida também poderia ter servido de pretexto para outras atualizações não apenas de estilo mas também de freios e suspensão que pudessem ter mantido essa configuração competitiva diante de projetos mais recentes que recorrem ao monobloco e hoje disputam o segmento dos carros "populares". Por mais que tal abordagem tivesse sido aplicada e não viesse a eliminar os custos de desenvolvimento quando eventuais atualizações fossem consideradas, não convém esquecer que o uso de conjuntos mecânicos do Fusca já foi uma solução bastante comum para salvar do sucateamento modelos importados até mesmo originalmente dotados de motor dianteiro como um Simca 8 remontado sobre um chassi encurtado de Fusca que um tio meu teve ou um Citroën Traction que eu vi aqui em Porto Alegre a alguns anos atrás. Por mais que essas adaptações tenham sido comuns entre as décadas de '70 e '90 e fossem motivadas basicamente pelas dificuldades na obtenção de peças de reposição originais, não dá para ignorar que apenas reforçam uma vez mais a versatilidade inerente ao projeto básico do Fusca e não deixa de dificultar mais ainda a busca por um efetivo substituto.

Digno de uma menção especial dentre as tentativas de suceder o Fusca foi o conturbado projeto dos Gurgel BR-800 SL e Supermini, com motor dianteiro e tração traseira que podiam levar a crer em um prejuízo às capacidades de incursão por terrenos irregulares mas cuja procura por um equilíbrio de peso na proporção de 50% por eixo quando vazio visava atenuar e até seria naturalmente compensada ao trafegar com carga. Tinha seus méritos em função de ter sido projetado especificamente para atender às necessidades brasileiras, ao invés de ser uma mera simplificação de projetos destinados aos países desenvolvidos como passou a ocorrer a partir de '90 quando o incentivo fiscal originalmente instituído em '87 pelo ex-presidente José Sarney para veículos com motor até 800cc foi alterado por Collor e passou a abranger um limite de 1000cc que se mantém até a atualidade. O motor boxer de 2 cilindros, que chegou a ser tratado equivocadamente por parte da mídia e do público como se fosse "meio motor de Fusca" mesmo recorrendo à refrigeração líquida e comando de válvulas com sincronização por corrente, teria sido desenvolvido a contragosto pelo engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel após uma negociação de uma licença para produção e uso do motor do Citroën 2CV ter sido abortada em virtude de uma cláusula contratual que condicionaria eventuais exportações a uma autorização prévia da Citroën. Ironicamente, hoje muitos remanescentes desses modelos produzidos respectivamente de '88 a '91 e de '92 a '95 rodam com motor Volkswagen adaptado.

Desde o Fiat Uno Mille que foi o primeiro a se beneficiar da tributação mais favorável que originou o atual conceito de carro "popular" até o Chevrolet Onix que tornou-se um improvável líder não só no mercado brasileiro mas também na América Latina, talvez o aspecto que mais se aproxime do legado do Fusca seja um receio do consumidor em apostar nas novas tecnologias para os motores. De certo modo remetendo à incredulidade de um executivo da Opel que teria reputado o motor do Fusca como muito sofisticado por incorporar conceitos então mais difundidos entre motores aeronáuticos à época da apresentação dos primeiros protótipos na Alemanha, o brasileiro se acostumou a negligenciar a manutenção preventiva motivado não apenas pela má-vontade de uma parte ainda expressiva dos mecânicos que resiste em se aperfeiçoar para trabalhar em veículos de maior complexidade técnica mas também pela busca da economia porca ao usar insumos de especificação mínima ou abaixo da recomendada e à procura pelo medíocre que faça um servicinho meia-boca apenas pelo preço menor que o de um profissional competente. Fazer uma gambiarra somente para tentar suprimir o efeito de uma pane que tenha surgido durante uma visita a parentes que morem em algum rincão isolado no interior até que se faça o reparo correto é aceitável, mas quando a prática se torna constante é o caso de se reavaliar o quão oportuno seria se desfazer do Fusca por um carro de motor menos rústico.

Talvez a abordagem mais eficiente no tocante a carros "populares" seja a do Japão, onde modelos tão diversos quanto um hatch claramente urbanóide como o antigo Subaru Vivio até um jipinho com boa aptidão a percursos fora de estrada como o Suzuki Jimny acabam por se complementar e atender a um público com necessidades e preferências mais variadas que possam não ser necessariamente satisfeitas por um único modelo. Embora aspectos da regulamentação japonesa para os kei-jidosha como o limite de cilindrada até 660cc e potência até 64cv ou as dimensões máximas de 3,40m de comprimento por 1,48m de largura e até 2 metros de altura tenham uma eficácia questionável pela nossa perspectiva brasileira, como a necessidade de recorrer ao turbocompressor para se alcançar o limite de potência previsto e o custo de produção possa ficar maior que o de um motor de aspiração natural com cilindrada superior ou que um descaso com a manutenção do turbo viesse a prejudicar a vida útil operacional do veículo, bem como a necessidade de atender a uma maior variedade de cenários operacionais caso seja o único veículo de um núcleo familiar, ainda é o exemplo que me parece mais realista apesar de não deixar de ter suas dificuldades de ordem técnica. Cabe destacar o sucesso de microvans de projeto originalmente japonês como a Asia Motors Towner de fabricação coreana que teve boa aceitação no Brasil durante a década de '90 e foi derivada de uma geração da Daihatsu HiJet, ou das inúmeras imitações chinesas da Suzuki Carry como as Chana/ChangAn Star que para o Brasil vinham só com tração traseira mas em outros mercados chegaram a contar até com opção de tração 4X4.

Com um projeto evidentemente antigo mas que ainda apresenta méritos, o Fusca mantém uma legião de admiradores que o reverenciam não apenas pela importância histórica mas também por se manter como uma opção realista para atender de forma satisfatória a alguns usuários do modelo tanto na cidade quanto em zonas rurais e periferias. Sem levar em consideração fatores como a facilidade de manutenção e uma adequação a condições de rodagem severas que dispense uma "tropicalização", é muito difícil atribuir um sucessor que ofereça versatilidade comparável nos mais diversos cenários operacionais a um custo razoável e com relativa facilidade para receber adaptações e melhorias. Por mais que hoje o mercado brasileiro apresente uma maior competitividade nos segmentos de entrada, o que de certa forma acabaria diminuindo o destaque a ser alcançado por um eventualmente legítimo "sucessor espiritual", o próprio Fusca chegou a concorrer no exterior tanto com modelos de projeto próximo em idade quanto outros mais modernos e até alguns Fords ingleses mais primitivos sem deixar de se destacar por suas próprias qualidades. Enfim, por mais que já tenha sido tentado em momentos até mais favoráveis a uma movimentação nesse sentido, hoje não seria muito realista apontar um sucessor para o Fusca...