domingo, 16 de janeiro de 2022

Uma reflexão sobre o conceito básico por trás do Ford Modelo T

Alguns produtos tornam-se tão icônicos que praticamente definem uma categoria à parte, e esse acabou sendo o caso do Ford Modelo T que muitas vezes é o primeiro a ser lembrado toda vez que se mencione algum "calhambeque" de forma genérica, eventualmente num contexto depreciativo no tocante à idade do veículo que seja alvo de observação. Produzido entre 27 de setembro de 1908 e 26 de maio de 1927, com o motor permanecendo em linha até 4 de agosto de 1941 tanto para suprir o mercado de reposição quanto atender a uma infinidade de aplicações que abrangiam desde maquinário especializado e barcos até alguns equipamentos e viaturas militares, foi um dos precursores do que hoje se conhece por "carro popular". Também destacou-se nos primórdios da mecanização rural nos Estados Unidos em função da capacidade de transpor trechos severos comparável às caminhonetes 4X4 que só seriam massificadas a partir do imediato pós-guerra à medida que o Jeep Willys se tornava conhecido do grande público pelas notícias sobre a II Guerra Mundial.
A concepção bastante rústica do chassi, que tinha a suspensão por eixos rígidos com os feixes de molas transversais tanto na frente quanto atrás, com o tempo foi ficando pouco comum entre os automóveis e mais restrita a utilitários comerciais mais pesados, e de certa forma a grande maioria das caminhonetes modernas que já incorporaram modernizações na configuração dos chassis e dos sistemas de suspensão e freios acabam mantendo algumas características "de calhambeque" como motor dianteiro longitudinal e tração traseira por eixo rígido mesmo em versões que já incorporem tração 4X4 part-time e suspensão dianteira independente. No caso específico do Modelo T, é conveniente destacar como o motor de 2.9L chega a ter uma cilindrada superior à média atual das pick-ups médias em versões a gasolina ou flex de aspiração natural que raramente superam 2.5L numa configuração mais parelha com 4 cilindros, apesar do motor do Modelo T ser extremamente rústico com válvulas laterais (flathead) e comando no bloco, e ter uma taxa de compressão baixíssima que se por um lado viabilizava o uso de gasolina de octanagem irrisória ou até querosene em algumas condições por outro impede um melhor aproveitamento da maior octanagem que o álcool/etanol oferece desde a época que fazendeiros americanos tinham oportunidade de abastecer com o "moonshine" de produção própria à base de milho. Em que pese tanta rusticidade, o mercado de acessórios e preparações que floresceu a partir do ciclo de produção do Ford Modelo T e foi consolidado no pós-guerra em meio à cultura dos hot-rods fomentou o desenvolvimento de cabeçotes e alguns componentes internos para o motor com especificações superiores à original em algum aspecto, de modo que eventualmente ainda possa até ser viável melhorar desempenho e eficiência a um patamar surpreendentemente mais confortável para acompanhar condições de tráfego modernas, em que pese o dimensionamento das suspensões e freios originais ser pouco convidativo para arriscar tal condição de uso...
Naturalmente, algumas peculiaridades do motor do Ford Modelo T acabam soando ainda mais bizarras em comparação aos motores de carros "populares" e outros modelos generalistas modernos, indo além da disposição das válvulas e dos regimes de rotação quase tão baixos quanto a marcha-lenta de alguns carros e motos atuais, ou da ignição que continuou usando magneto acoplado ao volante do motor como nas motos após a inclusão da opção pela partida elétrica que vinha acompanhada de um dínamo e uma bateria em 1919. Outra das peculiaridades mais destacadas do motor do Ford Modelo T é incorporar o câmbio com duas marchas à frente e uma à ré junto ao cárter e banhado pelo mesmo óleo lubrificante, como tornou-se um padrão na indústria motociclística, embora possa ser problemática na atualidade quando muitos automóveis oferecem a opção por câmbio manual ou automático, ao invés de algo como o câmbio "semi-automático" do Ford T que já encontra mais similaridade entre as motonetas como a Honda Biz cujo câmbio com 4 marchas também conta com embreagem automática. Como o controle do acelerador é manual por uma alavanca à direita da coluna de direção logo atrás do volante, e forma uma simetria de bigode com a outra alavanca à esquerda para ajuste manual do avanço da ignição originando o apelido "Ford Bigode", enquanto o câmbio é acionado pelo pedal à esquerda para as marchas à frente e o do meio para a ré, com o freio acionado pelo pedal direito, surge outra similaridade com as motos, e por mais improvável que possa parecer há até uma relativa facilidade para fazer adaptações destinadas a condutores com alguma deficiência física considerando a hipotética substituição do sistema de ignição original por outro mais moderno que dispensasse o ajuste manual do avanço e liberando espaço para a realocação de comandos do câmbio e/ou do freio de serviço.
À medida que novas tecnologias se fazem cada vez mais presentes até em motos mais modestas como a Honda Biz 110i, que lança mão da injeção eletrônica para cumprir as normas de emissões sem maiores sacrifícios ao desempenho mesmo com o catalisador, enquanto outras como freios ABS e controles de tração e estabilidade já são apresentadas também em carros "populares" com um viés generalista até de certa forma análogo a como o Ford Modelo T era apresentado, o custo sofre um impacto, e um projeto que só teve uma sobrevida enquanto valia a pena investir o mínimo em atualizações pontuais já ficaria mais difícil de justificar comercialmente. Levando em conta também a influência legada à concepção de veículos utilitários modernos que incorporam um alto grau de sofisticação nos principais componentes e sistemas contrastando com a austeridade "de calhambeque", eventualmente uma versão modernizada do Ford Modelo T pode parecer tão desejável quanto improvável. Enfim, mesmo considerando até algumas similaridades com veículos modernos das mais diversas categorias, o Ford Modelo T ainda enfrentaria um cenário bastante complexo se fosse o caso de permanecer em linha ou ser apresentado um sucessor direto e conceitualmente mais similar.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

6 modelos que podem ser classificados como eventuais sucessores para o Fusca

Um daqueles carros mais icônicos a nível mundial, o Fusca foi provavelmente o maior responsável pela abertura de alguns mercados anteriormente mais receptivos aos full-size americanos para os compactos. Com uma proposta bastante abrangente, visando atender desde usuários urbanos até o publico rural, fica especialmente difícil apontar um único sucessor ao longo das décadas, considerando tanto modelos da própria Volkswagen quanto da concorrência. Em meio a uma infinidade de carros com alguma proposta alegadamente "popular", cabe destacar ao menos 6:

1 - Gol G3:
sempre teve mais força em alguns países da América Latina, com destaque para o Brasil, mas chegou a ser exportado para a Rússia e o Irã, e até montado na China no regime CKD misturando peças brasileiras e chinesas. Sem dúvidas poderia ter sido bem melhor aproveitado pela Volkswagen em países do sudeste asiático e até uma presença maior na África, e apesar da concepção já antiga ainda é compatível com alguns dispositivos de segurança como freios ABS e airbag duplo. E por mais louco que possa parecer, se ainda fosse o caso de ser oferecido em alguns mercados um câmbio manual com 4 marchas, ainda poderia ter aproveitado a mesma carcaça de câmbio do último Fusca mexicano, porque a posição da coroa do diferencial podia ser alterada para inverter o sentido de rotação. Outro aspecto a se destacar é a Saveiro, que acabava despertando muita curiosidade entre fãs de pick-ups mundo afora, e chegou a ser exportada regularmente tanto para países latino-americanos quanto para Taiwan onde era denominada Pointer;

2 - Palio: modelo que foi essencial para a Fiat tomar a liderança de vendas no Brasil que antes parecia impossível de tirar da Volkswagen, ainda teve uma discreta presença em partes da Europa. Também foi produzido na África do Sul e na Índia, abrindo as portas para o motor 1.3 Multijet turbodiesel ter feito sucesso no mercado indiano não só em modelos da própria Fiat para ser usado em versões regionais de modelos da Chevrolet e da Maruti-Suzuki; 

3 - Suzuki Swift/Cultus de 2ª geração: teve uma grande presença internacional, e versões fabricadas no Canadá entre '95 e 2001 tiveram uma remodelação específica para atender aos Estados Unidos que não foi estendida ao modelo fabricado no Japão. A exemplo do próprio Fusca, vale lembrar que o Swift teve motores com bloco em liga de alumínio e suspensão independente nas 4 rodas. Ainda chegou a ser oferecido nos Estados Unidos também como Geo Metro até '97, e Chevrolet Metro entre '97 e 2001;

4 - Ford Ka de 1ª geração: as proporções até lembram vagamente o Fusca, e o porte compacto o fazia bastante atraente para consumidores latino-americanos e europeus com um perfil mais urbano, embora a falta de uma opção de câmbio automático fosse um empecilho para atrair japoneses e australianos já durante o ciclo de produção do modelo;

5 - Opel Corsa B: rebatizado como Chevrolet na América Latina, mas tendo chegado ainda como Opel no Chile e em territórios de alguns países europeus no Caribe, foi um dos modelos mais impactantes da década de '90 sem a menor sombra de dúvidas. Além de ter um formato arredondado que de certa forma chegava a remeter também ao Fusca, foi notabilizado no Brasil como o primeiro carro "popular" a usar injeção eletrônica, e no México foi o primeiro modelo a superar a antiga hegemonia do Fusca. E apesar da aparência um tanto delicada, é um modelo bastante robusto, tanto que chegou a ser exportado do Brasil para a África do Sul até 2009 para montagem no regime de CKD;

6 - Dacia Logan de 1ª geração: rebatizado como Renault em partes da América Latina e África, além da Índia e da Rússia, foi fundamental para aumentar a presença de mercado da Renault no Brasil. Com o projeto apresentado inicialmente em 2005 na Europa, devidamente atualizado no tocante às normas de segurança e emissões que vigoravam à época, e chegando ao Brasil em 2007 onde permaneceu em linha até 2015 quando deu lugar à 2ª geração, tinha uma proposta mais voltada a mercados emergentes, mas a disponibilidade também em mercados europeus ocidentais seguiu uma estratégia claramente análoga à do Fusca, destacando os baixos custos de aquisição e manutenção.