domingo, 18 de dezembro de 2022

Caso para reflexão: cabine dupla Tropical e muitas mancadas da Ford no mercado brasileiro

Já é público e notório que o Brasil não é para principiantes, e um daquelas situações que exemplificam bem o quão peculiar é esse país são as transformações antigas de pick-ups para cabine dupla como as da extinta Tropical Cabines, cuja atividade nos últimos anos esteve perigosamente centrada na linha Ford e acabou comprometendo a própria sustentabilidade desse modelo de negócio. Lembrando que a Ford faz basicamente a mesma coisa desde a época dos calhambeques, fomentando uma dependência excessiva por um único tipo básico de produto a ponto de agora tentar se posicionar mais como especializada nos veículos utilitários, é ainda mais bizarra a sucessão de erros culminada nos encerramentos de fabricação brasileira. E por mais que aquelas cabines duplas que apresentam um perfil mais parecido ao dos sedans acabem fugindo um pouco daquelas pretensões essencialmente utilitárias, e tivessem servido como um paliativo desde a época da restrição às importações entre '76 e '90, além de atenderem a quem preferia os motores Diesel a qualquer custo e por isso partiam para utilitários transformados desde quando ainda não se falava tanto de SUV, uma Ford F-250 com a cabine dupla Tropiclassic traz à tona alguns vacilos que remontam até mesmo à época que Amaral Gurgel foi funcionário da operação brasileira da Ford...

Por mais que algumas diferenças nem sempre muito óbvias entre os chassis de um utilitário de grande porte e o de um carro mais convencional pudessem levar a conclusões equivocadas quanto à viabilidade de produzir automóveis de perfil mais generalista desde o início da fabricação brasileira de caminhões Ford ainda na década de '50, um aparente descaso com o país já transparecia, e se refletia em gerações de caminhões e pick-ups full-size anteriores à F-250 lançada em '98, que chegavam ao Brasil obsoletas em relação ao mercado americano, enquanto até países como Venezuela e Argentina já acompanhavam mais de perto as evoluções da linha americana. E a bem da verdade, até a F-250 de certa forma expunha bem algumas mancadas da Ford, especialmente no tocante a opções de powertrain mas principalmente a maior disponibilidade de opções destinadas exclusivamente à exportação em determinados momentos na época que África do Sul e Austrália recebiam o modelo fabricado no Brasil com o cockpit à direita e opções que iam da cabine dupla original de fábrica à tração 4X4 cujas respectivas introduções oficiais ao modelo de especificação regional Mercosul eram sempre atrasadas. Mesmo considerando necessária uma regionalização das opções de motor turbodiesel, num primeiro momento com o Cummins B3.9 de 141cv e "só" 4 cilindros e logo em seguida o MWM Sprint 6.07 TCA de 180cv e 6 cilindros em linha que foi o único oferecido na África do Sul e chegou a ser oferecido na Austrália como uma opção mais austera ao V8 Power Stroke de 7.3L que no Brasil só equipou exemplares destinados à exportação com cockpit à direita, o fato de nunca ter sido vendida oficialmente pela Ford no Brasil uma F-250 equipada com câmbio automático entre '98 e 2011, e a tração 4X4 já oferecida desde o início para a Austrália e a África do Sul só ter chegado ao catálogo brasileiro no final de 2005 com uma nova versão de 203cv do motor Cummins incorporando gerenciamento eletrônico, certamente favoreceram outros modelos até de outras categorias e com um tamanho menor.

Lembrando que um chassi totalmente renovado para a linha Super Duty só surgiu nos Estados Unidos com o modelo de 2017, quando a F-250 já estava fora do mercado brasileiro e o relançamento da F-350 e F-4000 em 2014 ignorou qualquer alteração estética dos equivalentes estrangeiros e também deixava de lado a opção pela cabine dupla de fábrica na F-350, coube exatamente à Tropical Cabines como uma transformadora homologada pela Ford suprir aos clientes que desejavam ou efetivamente necessitavam desse recurso. Nesse caso já cabe até traçar um paralelo com a forma que a Tropical Cabines recorria ao plástico reforçado com fibra de vidro para a fabricação própria de componentes para a transformação de cabine simples em cabine dupla, e a forma como a Gurgel usou à exaustão esse mesmo material, apesar de caber uma ressalva pela Tropical ter sempre usado os chassis originais das caminhonetes ao contrário da Gurgel que chegou a produzir chassis próprios, podendo também ser feita até uma analogia entre as pick-ups transformadas e o encarroçamento de um chassi para ônibus. Tendo em vista a complexidade dos processos de homologação de veículos no Brasil atualmente, que no caso de alguns utilitários pode envolver desde um chassi básico até opções de carrocerias especializadas, eventualmente a Ford ainda pudesse ter aproveitado melhor a experiência da Tropical Cabines, concentrando-se apenas no chassi e opções de motor e transmissão, enquanto um fornecedor especializado que nos últimos anos de atuação esteve efetivamente devotado à Ford podia até haver implementado uma maior similaridade estética dos modelos nacionais com os similares americanos.

Por mais que a fábrica de São Bernardo do Campo onde era produzida a F-250 nacional tivesse sido um barril de pólvora no âmbito de ações judiciais trabalhistas e outros problemas entre a Ford e o sindicato dos metalúrgicos do ABC, a empresa ter desativado aquela operação que havia se tornado especializada em veículos pesados num mesmo momento que dependia do outsourcing junto à Otosan na Turquia no intuito de retomar a presença no mercado de caminhões na Europa Ocidental e com a Changan e a JMC na China visando atender tanto a segmentos de carros mais tradicionais quanto os SUVs e os utilitários para trabalho em geral soa um tanto incoerente. Tendo em vista que até hoje uma caminhonete full-size segue praticamente a mesma "receita" dos calhambeques acrescida de alguns "ingredientes" modernos, e portanto se enquadra naquela zona de conforto que a Ford buscou se posicionar, é inegável que havia um aproveitamento mais viável da operação brasileira no contexto de reestruturação a nível mundial. Enfim, mesmo à primeira vista parecendo "só" mais uma daquelas "brasilidades" difíceis de explicar a um estrangeiro que visita o Brasil pela primeira vez, uma F-250 com cabine dupla Tropical torna-se um bom exemplo de como a Ford negligenciou demasiadamente o mercado brasileiro mesmo quando tinha plenas condições de atender com mais empenho.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Críticas ao Fusca: algumas fazem sentido

Um carro que transcendeu da condição de mera ferramenta, e foi alçado a uma posição de ícone histórico e cultural, o Fusca sempre desperta reações intensas, tanto no exterior quanto no Brasil. Naturalmente, passa longe de ser uma unanimidade, tornando-se alvo de eventuais críticas chegando à proporção do ódio em alguns casos. O conturbado ciclo de produção do modelo, que efetivamente só ganhou impulso porque um oficial inglês das forças de estabilização da Alemanha durante o imediato pós-guerra entendeu que haveria uma oportunidade de fomento econômico e oferta de empregos à população da cidade de Fallersleben/Wolfsburg com a Volkswagen renascendo dos escombros, também passou por momentos distintos no Brasil, como um relançamento politicamente motivado que deu origem ao Fusca Itamar de '93 a '96.

Tal circunstância podia parecer óbvia para "blindar" o Fusca de críticas, tendo em vista que havia passado 7 anos fora de produção no Brasil iniciada em '59 e desativada em '86. A bem da verdade, por mais que o Fusca até conseguisse atender bem a um público mais específico fora da "bolha" das capitais e de alguns centros regionais com infraestrutura mais desenvolvida, é natural que o projeto já antigo à época do primeiro encerramento da fabricação brasileira acarretasse em alguns compromissos que o público generalista via como inaceitáveis diante da nova geração de carros "populares" que surgia na década de '90. E por mais que o bom e velho motor com refrigeração a ar tenha seus méritos diante de negligências na manutenção que ainda se vê muito por esse Brasil afora, já começa por aí uma reflexão quanto a eventuais descasos por parte da Volkswagen quanto a possíveis melhorias como a injeção eletrônica que já se usava no Fusca mexicano antes que fosse retomado o ciclo brasileiro na fase Itamar.

A suspensão dianteira com barras de torção, que ocupavam um espaço imenso na frente, era um empecilho para ampliar capacidades do bagageiro frontal e também do tanque de combustível, além do bagageiro interno que se localiza entre o encosto do banco traseiro e o quadro de fogo ter acesso mais difícil em comparação ao bagageiro de um hatch com motor dianteiro. Para quem podia dispensar a capacidade de trafegar por trechos severos nas periferias ou no interior, era previsível a preferência por uma melhor ergonomia para a acomodação de bagagens e cargas leves, já relegando o Fusca a um público "de nicho" e teoricamente pouco rentável. Pode ser que a própria Volkswagen não tenha mais sabido segmentar a propaganda para alcançar aos clientes com um perfil devidamente ajustado ao Fusca, que na prática se via totalmente livre de concorrência tanto em meio ao fim da Gurgel e os custos de utilitários 4X4 que poderiam ser considerados mais parelhos no tocante à aptidão off-road.

Ter somente duas portas, que já influenciou até modelos de segmentos mais prestigiosos ao ponto de terem versões de duas portas só para o Brasil, era algo indesejável aos olhos de uma parte expressiva do público quando o Fusca Itamar surgiu. Por mais que ainda se veja muito carro "popular" de gerações mais novas com só duas portas, a ascensão das 4 portas no mercado brasileiro já atrapalhava a competitividade mesmo antes do Itamar ter a produção encerrada em '96. A pequena área envidraçada, característica que já tinha sido revista na Europa enquanto o Fusca no Brasil se mantinha sem grandes alterações durante o ciclo de produção original que foi até '86, também se revelava um problema e desencorajava potenciais compradores, bem como a falta de ventilação forçada que era especialmente injustificável em um país com climas tão extremos em algumas localidades, por mais que aqueles ventiladores de camelô para ligar ao acendedor de cigarros às vezes quebrassem um galho...

A perfeição é francamente impossível de se alcançar, e diferentes graus de evolução nas indústrias e uma exigência também maior do público generalista acabam por levar um antigo sucesso a ter as limitações expostas a uma avaliação mais severa. No caso do Fusca mais especificamente, que era favorecido no Brasil pela falta de um efetivo concorrente especialmente antes da reabertura das importações, ficava até mais previsível uma acomodação da Volkswagen do Brasil, bem como resignação de uma parte expressiva do público que comprava Fusca mais em função das condições de uso severas. Enfim, apesar de terem se firmado outros parâmetros no mercado brasileiro que atrapalhavam uma continuidade do Fusca, algumas críticas ao modelo já se mostravam justificáveis, em que pese ter se tornado um ícone cultural.