quinta-feira, 13 de junho de 2024

Vespa: o verdadeiro "Fusca das motos"?

Sem sombra de dúvidas a Vespa é um veículo icônico, e especialmente relevante para que a categoria de scooters ganhasse projeção mundial. Do meio de transporte austero e útil para a reconstrução italiana no pós-guerra até ser alçada a um patamar de destaque na cultura italiana moderna, ter peculiaridades que a diferenciavam de uma concepção mais ortodoxa das motocicletas também justifica até analogias com o choque que causou um dos carros mais reconhecidos por diferentes gerações no Brasil e que também provinha de um país europeu, a bem da verdade afetado mais pesadamente pelas duas grandes guerras mundiais. E se um contexto histórico semelhante já seria suficiente para comparações, há ainda fatores de ordem mais técnica e de posicionamento de mercado que se revelam mais parecidos do que se poderia esperar.


Naturalmente a comparação ao Fusca é inevitável, porque apesar de ter sido originalmente projetado no entreguerras como parte da propaganda nacional-socialista ao invés de ter sido desenvolvido às pressas no pós-guerra também foi muito útil na Alemanha Ocidental e em mercados de exportação que incluíam o Brasil antes de ser estabelecida também a fabricação local. O claro contraste diante de uma concepção mais próxima dos calhambeques que ainda se observava nos carros americanos, que se mantinham mais influentes no Brasil antes da Volkswagen ter conquistado exatamente graças ao Fusca uma liderança no mercado brasileiro que permaneceu por décadas, também acaba sendo uma semelhança conceitual pela pouca ortodoxia técnica. E a relativa simplicidade de manutenção e operação comparada a concorrentes mais tradicionais, cuja maior complexidade mecânica associada ao tamanho e peso menos convenientes no uso urbano favoreciam uma opção "revolucionária" à primeira vista, favoreceram a rápida ascensão de ambos os modelos em mercados internacionais tão diversos quanto os Estados Unidos ou países em desenvolvimento em regiões periféricas que incluíam o Brasil e partes da Ásia.

E embora a rápida ascensão da indústria automobilística japonesa a nível mundial que desbancou o Fusca da posição de destaque entre os carros econômicos já na década de '70 tenha demorado a ter um reflexo no Brasil, a situação no setor motociclístico foi ainda mais rápida com a Honda CG 125 fazendo o conceito de "Universal Japanese Motorcycle" fincar raízes que a fazem ser às vezes apontada como se fosse um "Fusca de duas rodas" exatamente pela popularidade que conquistou no mercado brasileiro. O projeto foi declaradamente voltado a países emergentes, onde o motor de comando de válvulas no bloco e sem corrente de comando teria grande importância para a Honda conquistar a fama de confiabilidade, e superar tanto a Vespa e similares quanto as motos de outros fabricantes japoneses como a Suzuki e a Yamaha que por muito tempo persistiam em motores 2-tempos porque a simplicidade parecia mais fácil de assimilar para usuários um tanto relapsos quanto a manutenções preventivas. Naturalmente o fato da antiga CG "varetada" ter o motor refrigerado a ar e o comando de válvulas acionado só por engrenagens também seria assimilado com relativa facilidade em um Brasil onde o Fusca já se destacava no mercado automobilístico, e a acelerada urbanização durante o Milagre Econômico Brasileiro ocorrido no regime militar seguido pela primeira crise do petróleo proporcionavam condições ideais para a Honda avançar a ponto de conquistar entre as motos uma hegemonia comparável à que a Volkswagen detinha na época áurea do Fusca no mercado brasileiro. 
Se por um lado a Honda CG 125 foi útil para a Honda tanto no Brasil quanto principalmente em partes da Ásia e África onde variações do modelo "varetado" seguem em produção, por outro a produção sob licença de modelos derivados da Vespa em países como a Índia onde a Bajaj Chetak preservava o viés essencialmente utilitário mesmo quando uma demanda pela Vespa original como ítem de colecionador oportunizava exportações da scooter indiana sob o apelo da nostalgia remete à busca por Volkswagens brasileiros e mexicanos antigos para atender a uma demanda semelhante em outros países. E apesar da Honda CG 125 ter sido também copiada à exaustão na China, onde derivados seguem em produção até a atualidade tanto seguindo mais à risca o projeto original do motor quanto com pequenas alterações, os derivados da Vespa acabavam preservando com mais fidelidade algumas peculiaridades que identificam facilmente a origem como a suspensão dianteira que suporta a roda por um único lado para facilitar uma rápida substituição do pneu caso seja furado, sendo possível fazer também uma comparação com o uso de motor traseiro no Fusca e em derivados feitos tanto pela própria Volkswagen ou pelas importadoras encarregadas da montagem em regime CKD como ocorria nas Filipinas quanto por outras empresas.

Outro aspecto que pode reforçar uma certa similaridade entre Vespa e Fusca no tocante à popularidade é que ambos deram origem a um veículo utilitário de reconhecida versatilidade, embora os derivados da Vespa recorressem à configuração de triciclo tanto no caso do Piaggio Ape original quanto as inúmeras cópias indianas incluindo modelos Bajaj que chegaram a ser brevemente importados pela Kasinski para o Brasil entre 2001 e 2004. Mesmo assim, alguns detalhes estéticos mais evidenciam semelhanças com a Vespa que as ocultam, e nem as substituições dos motores compartilhados com a Vespa por outros de configurações diferentes como 4-tempos a gasolina ou até Diesel a depender do país justificariam dizer que o projeto básico teria ficado totalmente irreconhecível. E considerando desde o Piaggio Ape como uma importante ferramenta na reconstrução da Itália no pós-guerra quanto a relevância dos modelos de fabricação indiana na atualidade em diferentes regiões onde triciclos utilitários são mais apreciados que no Brasil, uma analogia da Vespa e do Piaggio Ape com a relação entre a Kombi e o Fusca também fica inevitável, guardadas as devidas proporções em função das respectivas capacidades de carga e da baixa velocidade máxima entre os triciclos derivados da Vespa desencorajar eventuais incursões rodoviárias...

Uma semelhança mais subjetiva, mas que também reforça a percepção quanto à Vespa ser algo como o equivalente motociclístico do Fusca, é a abordagem das peças publicitárias voltadas aos Estados Unidos destacando a simplicidade e a economia operacional de ambos os veículos em comparação a um carro americano típico das décadas de '50 a '70. Por mais que diferenças óbvias de ordem técnica entre motos e carros de um modo geral já fossem observáveis, o fato de Vespa e Fusca terem sido apresentados com pretensões comparáveis à maior demanda pela moto como uma alternativa ao carro "popular" no Brasil atual onde a indústria automobilística tem priorizado alguns segmentos mais pretensamente sofisticados também os aproxima mais que os distancia. Enfim, levando em consideração desde uma importância no início da indústria de veículos no Brasil quanto contextos internacionais, a Vespa acaba sendo de fato o "Fusca das motos".

sábado, 1 de junho de 2024

Defasagem estética perante os similares americanos ou conjuntos mecânicos "tratorizados" em demasia: qual teria sido o principal inconveniente para a linha Ford Super Duty manter a competitividade no Brasil?

Primeira geração de pick-ups full-size Ford atualizada no tocante à estética com relação às congêneres feitas nos Estados Unidos à época do lançamento, a linha conhecida internacionalmente por Super Duty ainda precisou de algumas adaptações no tocante aos conjuntos motrizes para se manter competitiva no Brasil ao ser lançada no final de '98. Ao contrário dos Estados Unidos onde reinavam os motores V8 de alta cilindrada, fatores como a importância dada à economia de combustível e a percepção muitas vezes equivocada que uma menor quantidade de cilindros inerentemente melhorasse tal aspecto, bem como o próprio custo reduzido de um motor mais austero e a simplicidade de manutenção, fomentaram o uso do motor Cummins B3.9 nas versões turbodiesel já no lançamento, chegando a ser o único motor oferecido na F-4000 antes do primeiro encerramento de produção ao final de 2011 para voltar em 2014 equipada com o motor Cummins ISF2.8 que ficou até 2019 quando a produção brasileira de caminhões Ford teve um fim melancólico. O mais irônico é que, quando as versões RHD das caminhonetes Ford Super Duty destinadas a países de mão inglesa como a Austrália e a África do Sul eram feitas no Brasil até 2005, as opções de cabine dupla e tração 4X4 foram oferecidas com mais celeridade em comparação ao próprio Brasil onde a cabine dupla original de fábrica só começou a ser oferecida ao final de 2003 para a F-250 e a F-350, enquanto a tração 4X4 estreou apenas em 2005 para a F-250 e a F-4000.

No caso da África do Sul que recebia oficialmente só versões equipadas com o motor MWM Sprint que foi usado no Brasil entre '99 e 2005, e sempre com câmbio manual tal qual acontecia no Brasil, já cabe destacar que a versão 4X4 de cabine simples e carroceria longa esteve disponível por todo o tempo que a F-250 brasileira foi oferecida por lá, além da versão de cabine dupla ter sido oferecida somente como 4X4, o que torna ainda mais bizarro a Ford só ter disponibilizado versões 4X4 da F-250 quando voltou a usar o motor Cummins, numa versão já com gerenciamento eletrônico em cumprimento às normas de emissões Euro-3. Ironicamente a injeção mecânica continuava nas F-350 e F-4000 tendo em vista que o público estritamente profissional atendido por tais modelos em detrimento do perfil mais recreativo que era atribuído à F-250 tendia a preferir a rusticidade mesmo que fosse necessária uma calibração menos vigorosa para seguir a mesma normativa ambiental, enquanto a partir de 2012 com a chegada da Euro-5 os motores governados mecanicamente precisariam ser descartados de qualquer jeito, e para a Ford um encerramento da produção da Super Duty pareceu fazer sentido no final de 2011. Mas a exemplo do que a Volkswagen fez entre '93 e '96 com o Fusca Itamar, a Ford relançava a F-350 e a F-4000 em 2014 para serem descontinuadas definitivamente em 2019, e o uso do motor Cummins ISF2.8 ao invés de alguma versão eletrônica dos motores Cummins da série B foi algo que dividiu opiniões mesmo entre uma parte mais tradicional do público que por motivos específicos como repartições públicas ou produtores rurais considerava uma F-4000 com tração nas 4 rodas indispensável, e a bem da verdade davam pouca ou até nenhuma importância à percepção de prestígio que usuários com perfil mais recreativo podiam atribuir a fatores como uma quantidade maior de cilindros.

Naturalmente a ascensão das pick-ups médias junto ao público urbano durante a agitada reabertura das importações na década de '90 alterou a dinâmica do mercado para as pick-ups full-size de modo geral, e a GM encerrou a operação nesse segmento no Brasil já ao final de 2001 quando os modelos Chevrolet e GMC então concorrentes da Ford Super Duty saíam de linha após insistir nos mesmos erros de ignorar uma demanda reprimida por opções como tração 4X4 e câmbio automático que faziam sucesso na mão de importadores independentes e a cabine dupla para a qual transformações artesanais eram uma opção relativamente popular, além da defasagem mais acentuada perante os congêneres americanos. E apesar da Ford ter ficado à vontade no segmento até a Chrysler entrar oficialmente em 2006 através da Dodge, e hoje dar continuidade à presença no mercado brasileiro de pick-ups full-size com modelos importados da marca Ram que já faz incursões também entre as mid-sizes de fabricação nacional, a chegada de um concorrente de peso foi um duro golpe pela importação ter proporcionado uma paridade técnica com os modelos de especificação americana que agradavam ao público generalista/recreativo. A opção feita pela Ford ao final de 2005, revertendo a F-250 do motor MWM Sprint 6.07 TCA de 6 cilindros e 4.2L para o Cummins de 3.9L e 4 cilindros ao invés de eventualmente uma versão com gerenciamento eletrônico do MWM, acabaria sendo um tiro no pé porque a Dodge e posteriormente Ram usar versões de 6 cilindros dos mesmos motores Cummins série B deixava escancarado aquele caráter de improviso que remontava ao início da migração das pick-ups full-size brasileiras de sedentos motores a gasolina de 6 a 8 cilindros para os Diesel inicialmente com 4 cilindros buscados de forma imediatista no rescaldo da primeira crise do petróleo junto a fornecedores que atendiam a fabricantes de tratores agrícolas e outros maquinários especializados.

Embora a obscena carga tributária brasileira leve a um custo exagerado para produzir localmente, e até importar esteja longe de ser exatamente barato, um alegado protecionismo à produção local que causou letargia aos fabricantes estrangeiros instalados no Brasil e necessitava às vezes gambiarras para manter a competitividade antes da reabertura das importações motivou falhas da Ford no tocante a motores até na linha de automóveis a ponto de ter formado a joint-venture AutoLatina com a Volkswagen para conseguir motores mais competitivos. No caso de pick-ups full-size e caminhões, o outsourcing ser bem aceito no âmbito dos motores Diesel poderia teoricamente simplificar a operação, mas a insistência na mesma estratégia imediatista que remonta a épocas onde havia menos tecnologia no setor automotivo brasileiro foi demasiadamente arriscado diante da virada de mesa causada por um concorrente que chegou praticamente de surpresa, bem como a linha Ford Super Duty ter deixado de acompanhar as atualizações estéticas que até os congêneres montados na Venezuela recebiam, ou ignorar a necessidade de operadores profissionais por opções que pareciam "luxo" como cabine dupla que no caso de modelos Euro-5 só foi oferecida por transformadoras como a Tropical Cabines. Enfim, se a defasagem estética também acarretou em dificuldades para manter a atratividade para o público particular que atribuía utilizações mais recreativas aos modelos, mesmo que a concorrência em determinados momentos também fosse afetada pela exigência da habilitação na categoria C ou superior em função do peso bruto total acima de 3500kg, certamente usar conjuntos mecânicos excessivamente "tratorizados" pode ser considerado o principal inconveniente.