terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Encerramento da produção da Ford no Brasil: surpreendente, mas até certo ponto previsível

Um fabricante inegavelmente muito tradicional, a Ford teve por muito tempo uma estratégia confusa no Brasil, apesar de ocasionais golpes de sorte terem postergado um encerramento da produção no Brasil. A dependência excessiva por poucos modelos para manter um volume razoável de vendas, nos últimos anos mais restrita ao Ka e ao EcoSport que desde 2019 foram os últimos automóveis Ford produzidos no Brasil, não proporcionava uma agilidade necessária diante da volatilidade de um mercado brasileiro mais complexo do que conseguiam supor os dirigentes tanto a nível internacional quanto nacional. Por mais iminente que parecesse a necessidade de uma reestruturação drástica da Ford a nível institucional, no fim das contas a decisão de fechar as fábricas de Taubaté que produz componentes mecânicos e a de Camaçari onde eram produzidos o Ka e o EcoSport das gerações atuais não soa tão surpreendente.
No caso específico do EcoSport, por simplesmente pertencer à categoria dos SUVs crossover até podia levar a crer que se mantivesse mais sustentável diante da consolidação de alguns dos maiores mercados em torno de modelos com essa proposta, e permaneceria enquadrado na recente estratégia de priorizar a linha de utilitários em detrimento de automóveis mais convencionais. A perda de relevância do modelo no mercado brasileiro, à medida que a concorrência foi ficando mais acirrada entre os SUVs crossover compactos nos últimos 10 anos, contrasta com a importância que o EcoSport teve em outra época para a continuidade da própria presença da Ford no Brasil quando a fábrica de Camaçari se encaminhava para ser a principal unidade da empresa no país. Uma operação baseada na importação, com modelos como a Ranger que permanece em produção na Argentina apesar da instabilidade política e econômica por lá, a princípio pode facilitar uma oferta mais diversificada de modelos, mas não deixa de ser arriscada tanto em função da complexidade na logística de reposição de peças e manutenção quanto pela tradição como uma marca generalista dificultar um reposicionamento da Ford em segmentos mais prestigiosos.
Não deixa de ser conveniente observar que a aposta em SUVs e pick-ups denota um comodismo que de certa forma remete à estratégia da época dos calhambeques, tendo em vista que hoje uma pick-up média como a Ranger por incrível que pareça ainda guarda alguma semelhança conceitual com o Ford Modelo T, além da presença global da atual geração da Ranger ser também comparável à quase-onipresença do "Ford Bigode". Apesar das diferentes configurações de motor e câmbio de acordo com as preferências e normas de cada região proporcionarem algum distanciamento das premissas de que um único projeto já atenda a todos os mercados, e também outros sistemas tenham evoluído significativamente durante os 104 anos que separam os respectivos lançamentos, o simples fato da Ranger e outras pick-ups médias e grandes ainda terem o chassi separado da cabine e da carroceria e o motor disposto longitudinalmente com o eixo traseiro rígido sendo o da tração principal mesmo em versões 4X4 guarda semelhanças com um calhambeque. E considerando também as condições de cada mercado, com alguns hoje alçando as pick-ups a uma posição de prestígio que não chega a ser o caso nos Estados Unidos, o mesmo ocorria com o Ford Modelo T no Brasil quando o simples fato de possuir um automóvel ainda era um privilégio em contraste à popularização dos carros que o modelo proporcionou ao público americano.
A insistência da Ford em acomodar-se a um segmento "popular" com relativamente poucas variações já se revelou insustentável em outros momentos, quando algum modelo de pretensões mais modestas tinha que ser oferecido para atender a mercados com peculiaridades que iam desde a incidência de impostos atrelada à cilindrada que prejudicou o Modelo T na Europa até a relevância dos sedans compactos como na atual geração do Ka tanto para usuários particulares quanto operadores comerciais como taxistas. Se em outros tempos a rusticidade de um calhambeque até não se distanciava muito de premissas utilitárias hoje alçadas a uma condição até prestigiosa, hoje a prevalência de características como o monobloco e o motor transversal combinado à tração dianteira parecem distanciar a Ford daquela velha mentalidade que remonta à época do próprio Henry Ford. Enfim, mesmo que cause alguma surpresa o encerramento da produção de veículos pela Ford no Brasil, era uma decisão até certo ponto previsível.

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