sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Quais seriam as condições mais desafiadoras para o conceito dos motores LiquidPiston alcançar uma efetiva viabilidade técnica/comercial?

Em meio a discussões acaloradas acerca de uma eletrificação mais intensa do transporte motorizado desde uma hibridização, até a crença na mobilidade 100% elétrica como se pudesse atender as necessidades de todos os usuários de veículos motorizados, o motor de combustão interna ainda tem de modo geral uma versatilidade muito difícil de subestimar. Mesmo diante da histeria em torno da "descarbonização" ou então de uma "neutralização" que seria na prática fechar o ciclo do carbono na atmosfera mediante uso de biocombustíveis como o álcool/etanol ou combustíveis sintéticos, e mais recentemente o "hidrogênio verde" sendo apontado como uma alternativa à eletrificação, é um tanto previsível que o motor de combustão interna tenha um futuro mais promissor do que se poderia esperar. E se por um lado motores com uma concepção mais tradicional sejam ainda capazes de oferecer uma experiência com a qual uma maior familiaridade agrada ao público generalista, por outro uma série de desafios de ordem técnica fomentam um interesse por projetos mais recentes como o dos motores LiquidPiston.
Naturalmente o eventual ceticismo quanto a novas tecnologias no tocante a motores fica mais crítico em segmentos onde o custo é um fator de extrema relevância, como motos de pequena cilindrada e os triciclos utilitários que são derivados do Piaggio Ape original italiano e ainda extremamente populares na Índia, e a configuração austera de 1 cilindro concilia a leveza e o porte compacto a um preço mais competitivo, a ponto de às vezes parecer até impossível que qualquer outra implementação ganhe mais espaço. No caso específico da Bajaj por exemplo, que usa 3 velas de ignição mesmo com um motor monocilíndrico na moto Dominar 200 vendida no Brasil e que é equivalente à Pulsar 200 indiana, aparentemente fica mais fácil assimilar algumas peculiaridades de um hipotético novo motor a ser baseado em projetos da empresa LiquidPiston, voltada ao desenvolvimento de motores rotativos com uma proposta de solucionar os problemas dos motores Wankel. Teoricamente, como o mercado motociclístico é mais receptivo aos motores de apenas 1 cilindro enquanto essa abordagem é rejeitada nos automóveis até entre os modelos mais austeros, e traçando um paralelo com o fato dos únicos motores Wankel a alcançar efetivamente um sucesso comercial no mercado automotivo terem 2 rotores, até uma eventual aplicação mais imediatista de conceitos que a LiquidPiston apresentou inicialmente em alguns motores experimentais de rotor único já cairia como uma luva para motocicletas e similares.

Lembrando que uma expectativa criada em torno dos motores Wankel era de substituir o motor 2-tempos em algumas aplicações mais sensíveis ao peso, incluindo as motocicletas e similares como a Vespa que por décadas foi a principal referência de scooter e um ícone cultural italiano moderno, pode parecer injustificável num primeiro momento tentar a sorte com um motor rotativo baseado nos projetos da LiquidPiston, além do mais que a hegemonia do motor 4-tempos convencional alcançou também segmentos para os quais o Wankel nunca foi efetivamente uma solução. O alto consumo de óleo lubrificante tratado como um calcanhar de Aquiles dos motores 2-tempos também afetava os Wankel, devido à necessidade de lubrificar os 3 retentores apicais instalados nas extremidades de cada rotor que tinham função análoga à dos anéis de pistão nos motores convencionais, levava a uma rejeição por parte do grande público e inviabilizava apostar mais alto nos Wankel. A comparação dos motores LiquidPiston com os Wankel é inevitável por serem rotativos, mas as diferenças entre formatos de rotores e respectivos alojamentos acabam sendo um fator de extrema relevância tanto no tocante à vedação entre as câmaras internas quanto à instalação dos próprios retentores apicais nos motores LiquidPiston em posição fixa na carcaça do alojamento com uma lubrificação mais eficiente e uma menor exposição aos choques térmicos e forças centrífugas que impõem um pesado desafio para assegurar durabilidade minimamente satisfatória aos motores Wankel.
Se por um lado os desenvolvimentos iniciais da LiquidPiston terem as provas de conceito com rotor único já poderia ser suficiente em segmentos onde é consolidado o predomínio dos motores 4-tempos de apenas 1 cilindro, a exemplo de motocicletas e assemelhados de pequena cilindrada, por outro a necessidade de proporcionar um fluxo mais eficiente de admissão e escape à medida que se use uma quantidade maior de rotores e respectivos alojamentos é uma eventual dificuldade para ter boa aceitação do público generalista. Em que pese a escalabilidade ser aplicável para motores das mais diferentes concepções, e a linha de motores Fiat GSE/Firefly em versões de 3 e 4 cilindros ser um dos exemplos mais fáceis de lembrar no Brasil atualmente, vale destacar que a concepção predominante nos motores "de carro popular" contemporâneos com comando de válvulas no cabeçote ainda torna necessária uma maior quantidade de peças específicas em função de quantos cilindros um motor vá ter. Considerando motores de 3 e 4 cilindros que venham a ser produzidos usando rigorosamente o mesmo ferramental, e compartilhando uma grande proporção dos componentes internos, a modularidade acaba sendo menor do que possa ser implementado a linhas de motores rotativos, para os quais o único componente a ser específico de acordo com a quantidade de seções seria um eixo excêntrico que tem função análoga ao virabrequim dos motores convencionais.
Enquanto um motor como o GSE/Firefly que no Fiat Cronos é oferecido nas versões 1.0 e 1.3 variando a quantidade de cilindros, com 3 no 1.0 e 4 no 1.3 compartilhando diâmetro e curso dos pistões, outros como o FIRE com 4 cilindros em todas as variações ainda são apontados como modulares cobrindo faixas de cilindrada diferentes mediante dimensões internas distintas e que também aumentam a quantidade de peças específicas para cada cilindrada, como os pistões de 70 milímetros no 1.0 ainda em uso no Mobi e 72 milímetros no 1.4 em uso no Fiorino. Se os blocos para os motores GSE variam de acordo com a quantidade de cilindros, e nesse aspecto fica mais fácil comparar aos motores rotativos como o Mazda 13B que tinha 2 rotores e deu origem ao 20B de 3 rotores, a facilidade para desenvolver versões maiores para um motor rotativo basicamente adicionando mais uma tampa intermediária e um alojamento com o respectivo rotor e um eixo excêntrico mais longo seria favorável a um hipotético motor baseado na tecnologia da LiquidPiston para atender às mesmas aplicações. Já no caso do FIRE, mesmo considerando o uso de blocos e virabrequins de comprimento idêntico para cobrir as diferentes faixas de cilindrada, ter medidas internas distintas pode levar a uma quantidade maior de peças específicas em função da cilindrada, e o eixo do comando de válvulas também tende a ser ajustado aos distintos fluxos internos mesmo que pudesse ser usado um idêntico em todas as versões, e portanto até uma eventual vantagem quanto à economia de escala em comparação aos motores GSE/Firefly que pela diferença nas quantidades de cilindros já precisariam de um eixo de comando de válvulas específico para cada versão.
Naturalmente cabe recordar também como a incidência de impostos atrelada à cilindrada pode interferir na estratégia dos fabricantes, tanto quanto o perfil de uso de um veículo e as prioridades que cada operador tenha, de modo que o motor 1.4 FIRE aspirado atenda bem no Fiorino que é mais tratado como um modelo estritamente de trabalho enquanto a Strada atende também a um perfil recreativo que possa justificar o GSE 1.0 turbo. Levando em consideração como o turbo só alcançou o público generalista porque nenhum fator de multiplicação é aplicado para mensurar uma equivalência a motores de aspiração natural, enquanto os motores Wankel no Japão são equiparados a um motor convencional 50% maior, talvez o fato da combustão completa ocorrer em cada câmara de um alojamento do rotor em um motor LiquidPiston permita uma comparação mais parelha aos motores convencionais no tocante aos cálculos de incidência de impostos. A princípio a mesma vantagem quanto à densidade de potência que se observava nos motores Wankel fosse capaz de favorecer um motor LiquidPiston com deslocamento mais modesto até sem turbo em aplicações nas quais o downsizing tem sido mais relevante, mas uma aceitação mais ampla de um único motor de 2 rotores e no máximo uma variação com 3 rotores ainda dependeria de uma definição quanto à incidência de impostos atrelada à cilindrada e uma ausência de fatores de multiplicação que tem geralmente desfavorecido motores rotativos.
Enquanto motores convencionais modernos recorrem à lubrificação por recirculação sob pressão de bomba, essencial para integrar o turbo, nos motores rotativos pode ser usado o mesmo método ou então a lubrificação por perda total do óleo durante o processo de combustão, tal qual nos motores 2-tempos de ignição por faísca. Ainda que o consumo do óleo junto ao combustível desagrade mais ao público generalista, e seja constantemente apontado também como um inconveniente no tocante ao controle de emissões, talvez a maior simplicidade técnica inerente ao uso de um sistema de lubrificação mais rústico ainda pudesse agradar a operadores com um perfil estritamente utilitário/profissional que abrange também a preferência por motores de aspiração natural no caso de modelos a gasolina ou flex, e a possibilidade de repor o óleo lubrificante ao invés de trocar pode até parecer facilmente justificável por eliminar o manejo de óleo lubrificante usado e talvez facilitar o uso de óleos de base vegetal como normalmente se usa em karts de competição com motor 2-tempos e por entusiastas de motocicletas com motor 2-tempos. E se por um lado o público generalista permaneceria um tanto cético quanto a motores rotativos, tanto os Wankel quanto os LiquidPiston, por outro eventualmente fique menos propenso a danos causados pelo uso de óleos de baixa qualidade ou pelo "ciclo da dona de casa" em trajetos excessivamente curtos nos quais a pressão do óleo permanece baixa demais para uma lubrificação adequada. 

Outro aspecto que poderia ser problemático em tentativas de inserção de motores com um projeto baseado nos desenvolvimentos da LiquidPiston seria a maior propensão dos motores rotativos de modo geral a operar a regimes de rotação mais elevados, tanto no caso de motores de ignição por faísca para veículos leves quanto lembrando que alguns projetos da LiquidPiston voltados a motores Diesel inicialmente destinados a aplicações militares também poderiam atender bem a caminhões nas mais diversas faixas de peso bruto total (PBT). Considerando uma maior complexidade inerente ao sistema de injeção nos motores Diesel, tanto na época que ainda predominava a injeção mecânica quanto com a ascensão do gerenciamento eletrônico e a maior presença da injeção common-rail, é interessante observar também como faixas de potência antes atendidas por motores de 6 cilindros passaram a ter um predomínio de motores com 4 cilindros, como por exemplo os MWM da série 10 anteriormente usados em alguns caminhões Volkswagen na faixa de 160 a 180cv e 6 cilindros em contraponto ao Cummins ISF3.8 que começou a ser usado na linha Delivery a partir da implementação das normas Euro-5 no Brasil. A onipresença do turbo em motores Diesel veiculares de concepção moderna também dispensa maiores apresentações, e portanto seria ainda mais crítica a necessidade de um sistema de lubrificação pressurizado com recirculação do óleo tanto para garantir a lubrificação dos mancais do eixo central quanto para a refrigeração da carcaça de um turbocompressor mais comum.

Apesar das diferenças em motores dentro de uma mesma faixa de potência no tocante à litragem e quantidade de cilindros poderem levar à eventual assimilação da intenção que nortearia o hipotético projeto de um motor baseado em tecnologia da LiquidPiston, que possa servir até a caminhões pesados Scania que tradicionalmente usam motores de alta litragem e regimes de rotação mais contidos, outro aspecto que eventualmente seja mais desafiador devido à ausência de válvulas de admissão e escape nos motores rotativos é o freio-motor, que nos motores Diesel costuma atuar no escapamento visando proporcionar contrapressão e induzindo a desaceleração do motor. No caso específico da Scania, mais conhecida por motores modulares entre 5 e 6 cilindros em linha ou 8 em V com comando de válvulas de eixo único no bloco cobrindo faixas de cilindrada entre 9 e 16 litros, cabe destacar a recente introdução de um motor de 6 cilindros em linha na faixa de 13 litros com comando de válvulas duplo no cabeçote e um sistema de freio-motor atuante direto no comando das válvulas de escape análogo ao Jake-Brake frequentemente aplicado aos caminhões americanos, mas aparentemente abrindo mão da modularidade. A princípio, além do freio-motor atuante no escapamento poder servir também a um eventual motor LiquidPiston, outra possibilidade de superar o desafio inerente ao controle mais preciso da desaceleração do motor seria recorrer a retardadores de frenagem acoplados ao câmbio, normalmente sob a denominação comercial Retarder na linha Scania, e que pela ascensão dos câmbios automáticos e automatizados em veículos pesados podem ser integrados com mais efetividade.
Com escalabilidade e versatilidade podendo atender de um caminhão Scania a uma moto de pequena cilindrada, pese a massificação da refrigeração líquida em motores de mais de 1 cilindro em praticamente qualquer veículo maior que as motos ainda precise ser aplicada também a eventuais versões de rotor único que o eixo excêntrico tenha orientação transversal tal qual motores de 1 cilindro refrigerados a ar como o da Yamaha XTZ 250 Lander, vale dizer sem medo de errar que a LiquidPiston fomenta esperança em torno do futuro do motor de combustão interna de modo geral. E assim como a máquina a vapor de James Watt precisou de aperfeiçoamentos e também enfrentou um ceticismo inicial, situação que seria repetida com a ascensão do motor de combustão interna em estágios mais primitivos de desenvolvimento, é natural que projetos de pretensões radicais como os motores Wankel e os LiquidPiston tenham um árduo caminho a percorrer da prova de conceito até uma aplicação em escala comercial. Enfim, além de eventuais equívocos os levarem a ser confundidos com os motores Wankel tão rejeitados pelo público generalista, o maior desafio para o projeto da LiquidPiston frutificar é a própria LiquidPiston demorar a superar a barreira do rotor único nas provas de conceito...

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