Elemento químico mais abundante no Universo, e também o mais reativo, não é de se estranhar que o hidrogênio seja um componente comum a quase todos os principais combustíveis automotivos e industriais atualmente em uso no mundo. Porém, usá-lo puro é um desafio tanto pela própria reatividade quanto por outros detalhes técnicos que dificultam e encarecem o manejo. Após os devaneios hi-tech das décadas de 50 e 60, com seus exuberantes dream-cars embalados pela science-fiction, as amargas recordações das crises do petróleo durante as décadas de 70 e 80 e o crescimento de uma "consciência ecológica" dentro de setores da indústria automobilística fizeram o interesse pelo hidrogênio respirar novos ares a partir da década de 90, conquistando entusiastas e apoio político. Vale recordar que até mesmo a indústria do petróleo, constantemente associada a um posicionamento mais acomodado e fortemente criticada em função da profunda negligência referente à pauta de responsabilidades sócio-ambientais, embarcou nas experiências mais recentes ao desenvolver e administrar estações de reabastecimento para veículos movidos a hidrogênio.
Remontando a 1863, quando Ettiene Lenoir apresentou um triciclo cargueiro equipado com o motor de combustão interna movido a gás que havia desenvolvido 3 anos antes, o sonho do hidrogênio atravessou a época áurea do querosene e a consolidação da gasolina, vindo a alcançar patamares mais avançados a partir de 1966 quando a General Motors apresentou o protótipo ElectroVan, baseado na geração de furgões de porte médio Chevrolet ChevyVan e GMC HandiVan da época e pioneiro no uso das aclamadas células de combustão (também citadas muitas vezes como "células de combustível", do inglês fuel-cell) associadas a um sistema de tração elétrica. No entanto, além do custo final do veículo ter alcançado um valor superior ao preço de 100 furgões de concepção mecânica tradicional (apenas a quantidade de platina presente nas fuel-cells já alcançava o montante tomado como referência), o conjunto eletromotriz tomava todo o espaço do compartimento de carga e ainda requeria o uso de oxigênio purificado para promover a reação com o hidrogênio, em oposição às gerações mais recentes de células de combustão que o fazem com o oxigênio disponível no ar. Atravessando o cenário agitado das décadas de 70 e 80, por mais que peso e volume ainda tornassem necessário o uso de veículos de grandes dimensões como mula de testes, foi apenas em 1991 que houve uma retomada intensa das pesquisas direcionadas ao uso das células de hidrogênio, por ação da Mercedes-Benz ao iniciar estudos que culminaram com a apresentação oficial do protótipo NECAR 1 (No Emissions Car 1), baseado no furgão MB100 (conhecido no mercado brasileiro como MB180-D), em 1994.
Apesar do peso de 800kg e do tamanho do conjunto eletromotriz limitar a capacidade do veículo ao motorista e um passageiro, o modelo já podia "respirar" livremente e alcançar velocidades compatíveis com a segurança no trânsito rodoviário, estimulando a procura por resultados mais economicamente viáveis. Já a partir de 1996, numa evolução consideravelmente rápida desde o NECAR 1, transportar 6 passageiros tornava-se possível com o NECAR 2, desenvolvido a partir do Mercedes-Benz Classe V, sucessor do MB100 no mercado europeu, cujo conjunto de gerador de eletricidade a partir de células de combustão limitava-se a pesar 270kg, alcançando uma relação peso/potência favorável ao uso em ônibus, como o NEBUS (No Emissions Bus) introduzido em 1997 para testes e que hoje tem continuidade com o Mercedes-Benz Citaro BZ. Ainda em 1997, no embalo do lançamento da primeira geração da minivan Mercedes-Benz Classe A, foi apresentado o NECAR 3, que mesmo estando novamente limitado à capacidade de transportar 2 passageiros incorporava um inédito reformador de metanol on-board para liberar o hidrogênio, o que acabava por facilitar os processos logísticos devido à maior simplicidade no armazenamento do metanol mas ocupava totalmente a área correspondente ao banco traseiro e ao porta-malas. Vale levantar uma polêmica sobre o reformador de metanol: o dispositivo acabava liberando uma quantidade de dióxido de carbono (CO², normalmente citado como "gás carbônico"), que se desejava eliminar do processo de combustão mediante o uso do hidrogênio... Com o interessante dispositivo removido para liberar espaço, o uso de hidrogênio puro era retomado com o NECAR 4 armazenando-o liquefeito por criogenia em 1999 e no ano seguinte o NECAR 4-a de especificação californiana usando o gás comprimido, mas já em 2000 estava disponível no NECAR 5 um reformador de metanol que não provocava intrusão na cabine e associado a células de combustão ainda mais compactas, leves e eficientes. No entanto, os Mercedes-Benz Classe A e Classe B nas versões F-Cell introduzidas a partir de 2006 em mercados selecionados na Europa, Japão e Estados Unidos (mais notadamente na California) dependem do hidrogênio purificado.
Vale destacar que, mesmo com o intenso esforço da Mercedes-Benz no fomento do hidrogênio para aplicações automotivas, houveram outras iniciativas por parte de diversos concorrentes, como a própria General Motors a partir de 2001 com a minivan HydroGen 3 baseada na Opel Zafira introduzida em 1998 mantendo a capacidade para 7 passageiros e o crossover HydroGen 4 de 2007 que era essencialmente uma versão modificada do Chevrolet Equinox. Ao contrário do modesto desempenho do NECAR 1 de 1994, 13 anos depois já era possível a um veículo com esse tipo de sistema de tração alcançar patamares comparáveis a veículos mais convencionais, e após 14 anos, o primeiro modelo destinado à produção em massa, o sedan Honda FCX Clarity, era lançado em 2008. O custo, no entanto, ainda leva um veículo equipado com células de combustão a custar aproximadamente 10 vezes mais que um híbrido serial como o Chevrolet Volt, resultando pouco mais de 20 vezes mais caro que um sedan médio como o Chevrolet Cruze por exemplo. Tal situação, associada à limitada disponibilidade do hidrogênio forçando a uma manutenção da capacidade de operar com a tradicional gasolina, acabou levando alguns a se aventurarem em adaptações de motores a combustão interna a partir de 1972, com um AMC Gremlin equipado com motor Ford 351W originalmente a gasolina e carburador de empilhadeira modificado devido à escassez de sistemas de injeção eletrônica à época, mas os maiores destaques acabam reservados à BMW com sedãs como o Hydrogen7 de 2002 e alguns exemplares do compacto MINI convertidas ao combustível alternativo, além da Mazda com variações da minivan Premacy e do cupê RX-8 equipadas com o exótico motor Wankel pelo qual o fabricante japonês demonstra uma notável estima. Também é digna de nota a Ford, que em 2006 com a F-250 Super Chief apresentou o primeiro motor movido tanto a etanol e gasolina quanto a hidrogênio.
Não custa lembrar aos desavisados de plantão que, por demandar processos de purificação, o hidrogênio acaba gastando uma energia que não vá ser necessariamente gerada de uma maneira tão "limpa" (problema igualmente enfrentado ao considerar a geração de eletricidade para atender a uma eventual participação mais intensa de veículos elétricos puros na composição da frota mundial), e depois para manter um armazenamento seguro nas estações de reabastecimento o problema se repete, fazendo que sob o ponto de vista econômico faça mais sentido o uso direto das substâncias cujo hidrogênio é extraído. Considerando ainda que a principal fonte de hidrogênio para aplicações automotivas e industriais é o metano, também não é totalmente eliminada a emissão de dióxido de carbono, geralmente "carbono velho" em função do uso majoritário do metano proveniente de reservas fósseis, tornando mais lógico de acordo com a sustentabilidade o uso de combustíveis provenientes da biomassa. Não é possível esquecer também algumas considerações referentes à segurança: enquanto os cilindros para armazenamento de gás combustível feitos em fibra de carbono atualmente suportam pressões máximas na ordem de 900bar sem ruptura, o metano (gás natural) normalmente é armazenado entre 200 e 220bar e o hidrogênio a 700bar, logo mantendo uma menor margem de segurança, além de escapar facilmente por microfissuras nas paredes dos tanques devido ao tamanho do átomo do hidrogênio e por conseguinte induzir à formação de uma atmosfera explosiva se o veículo for estacionado num local com circulação e renovação de ar mais limitada. Assim, por mais que o hidrogênio seja constantemente aclamado como "combustível do futuro", é provável que o tal futuro permaneça por um bom tempo sendo apenas um futuro do pretérito...
Minha opinião
Eu mesmo já fui mais favorável ao uso do hidrogênio, mais intensamente entre 1999 e 2003, e cheguei até mesmo a acreditar que por volta de 2015 já seria economicamente viável usá-lo em frotas de veículos de serviço que poderiam amortizar mais rapidamente o pesado investimento inicial, mas toda a complexidade que não se vê na hora de reabastecer o veículo no posto põe todo o encanto inicial em jogo ao levar à ponta do lápis todo o custo, esforço e impacto ambiental para viabilizar tecnicamente a operação...Já tive um bom acervo de material impresso sobre aplicações do hidrogênio como combustível alternativo, mas devido a um incêndio criminoso que em 22 de abril de 2002, a exatos 10 anos atrás, atingiu o local onde eu então residia e destruiu não só o acervo específico orientado ao hidrogênio mas também uma vasta coleção de revistas automobilísticas e motociclísticas em geral (além de algumas Playboy), hoje não disponho desse recurso. Tal fato trágico acabou dificultando a pesquisa para esta postagem, e eu acabei por optar em não usar imagens ilustrativas como forma de recordar a barbárie que me vitimou e destruiu aquele acervo pelo qual eu tinha uma profunda estima. O pior de tudo, no entanto, é saber que a autora do crime continua impune e segue praticando atos moralmente questionáveis, mas uma hora a casa cai para essa pessoa...