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sexta-feira, 20 de junho de 2025

Fusca: o Brasil não seria o mesmo sem ele

Que o Brasil às vezes é difícil de explicar para os estrangeiros, creio que a essa altura do campeonato ninguém tenha mais dúvidas, e certamente um aspecto que salta aos olhos de muitos quando conhecem o Brasil é o apreço da maior parte dos brasileiros pelo Fusca. Ter sido o único país onde o modelo teve um breve retorno às linhas de produção entre '93 e '96 por motivações políticas, após o ciclo original de fabricação brasileira que se estendeu de '59 a '86, já seria algo digno de nota pelo contexto de reabertura do mercado brasileiro aos automóveis importados e a consolidação do segmento de carros "populares" junto à população urbana, por mais que o Brasil tenha dimensões continentais e em muitas regiões mais interioranas ainda fossem comuns condições de rodagem árduas e a princípio desconhecidas por aqueles que estavam "encantados pelo macarrão Barilla e pela gravata-borboleta" como bem disse o Alexander Gromow em uma entrevista para a antiga TV Jovem Pan. Mesmo parecendo demasiado antigo para o contexto da época, além do mais que em outros países com condições econômicas e sociais parecidas com as nossas o lugar cativo da Volkswagen no segmento de veículos populares já estava dominado principalmente por fabricantes japoneses e também a ascensão dos coreanos, o Fusca seguia relevante no Brasil a ponto do então presidente Itamar Franco propor uma volta às linhas de produção e equiparar motores até 1.6L arrefecidos a ar e 1.0L arrefecidos a líquido para fins tributários.

A bem da verdade, assim como na atualidade uma parte do público aos quais os carros "populares" são direcionados olha com alguma simpatia para as motocicletas de pequena cilindrada em função do menor custo de aquisição e de uma manutenção mais simples, o Fusca também foi acompanhado pela moda das motonetas de origem italiana como a Lambretta cuja fabricação brasileira foi iniciada já em '55 e portanto antecedeu até a implementação do Grupo Executivo da Indústria Automobilísitca (GEIA) pelo governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira que proporcionou condições mais propícias a carros e utilitários de configuração mais tradicional. Lembrando que triciclos utilitários derivados de motonetas como a Lambretta e a concorrente Vespa foram fundamentais na reconstrução da Itália no pós-guerra, e posteriormente viriam a ser de suma importância para a motorização em países como a Índia alcançasse um resultado mais expressivo cuja influência perdura até a atualidade, e por incrível que pareça vem se expandindo em décadas recentes para outras regiões mais por influência indiana que italiana, chegaria a ser curioso tais modelos terem sido mais voltados a aplicações estritamente utilitárias de cargas leves no Brasil. Naturalmente uma percepção de carros como inerentemente mais prestigiosos que motocicletas foi tão fundamental para até um modelo de proposta austera como o Fusca ter sido mais destacado tanto como desejável aos olhos do público generalista quanto alinhado a uma política desenvolvimentista do governo JK, e por isso os triciclos hoje são tratados como mera excentricidade que alguns brasileiros só se deram conta da existência em 2009 quando a Globo exibiu a novela Caminho das Índias...
Antes que questionem se eu bebi daquele álcool de cereais puro destinado ao uso farmacêutico por fazer uma comparação entre o Fusca e um triciclo derivado da Lambretta, vale destacar que o uso do mesmo motor das motonetas e uma relação de transmissão mais curta para lidar com o peso restringiam demais a velocidade máxima, circunstância que acabaria sendo indesejável para um veículo que se propusesse a ser o único de muitas famílias e eventualmente precisasse disputar espaço nas ainda precárias rodovias da época com os primeiros caminhões de fabricação nacional durante viagens, sendo portanto previsível que tenha prevalecido o uso essencialmente urbano no transporte de cargas leves nas raras tentativas de firmar essa categoria de veículos no Brasil. Talvez a simplicidade do motor 2-tempos ainda sugerisse que algumas modificações para melhorar o desempenho seriam fáceis e de custo quase simbólico, bem como a possibilidade de apenas instalar uma capota de lona como se usava no Jeep CJ-5 e nas primeiras pick-ups nacionais para fazer um triciclo ficar próximo a um pau-de-arara miniaturizado, com uma maior leniência quanto ao transporte de passageiros no compartimento de carga de veículos que só teve fim em '98 com a entrada do atual Código de Trânsito em vigor, mas naturalmente essa possibilidade só fosse levada a sério caso o Fusca nunca tivesse vindo ao Brasil e os fabricantes de origem americana como a Ford e a General Motors tivessem permanecido mais voltadas a oferecer somente enormes sedãs full-size que acabavam ficando caros demais para alcançar um público mais expressivo e fazendo uma economia porca ao concentrar a produção de motores só naqueles que pudessem servir tanto a um carro grande quanto a um caminhão pequeno ou médio. Por mais que a proposta daqueles triciclos utilitários italianos baseados nas motonetas ainda me agrade, e até o enquadramento deles como análogos a uma motocicleta viabilize a maior leniência quanto às normas de emissões e de segurança que hoje viabiliza modelos de fabricação indiana alcançarem públicos mais austeros em outros países "emergentes" como as Filipinas ou até a nossa vizinha Colômbia, pode-se afirmar sem medo de errar que a importância até no âmbito cultural do Fusca no Brasil perpetua uma rejeição do público generalista aos triciclos.

Também seria errado ignorar a presença da Kombi que, tanto por usar o mesmo motor do Fusca quanto pelo aproveitamento de espaço em proporção às dimensões externas, deu à Volkswagen uma vantagem no mercado de utilitários que só foi desafiada com a chegada de vans coreanas na década de '90, tendo atendido às mais variadas demandas em usos estritamente profissionais e ainda servido como veículo familiar em alguns casos. Oferecendo uma melhor manobrabilidade em espaços exíguos, característica que viria a ser de suma importância à medida que o Brasil passava por uma intensa urbanização com o pós-guerra e uma volta de grandes ondas de imigração européia e asiática que se estendeu até o Milagre Econômico Brasileiro no regime militar, mas preservando uma distribuição de peso entre os eixos que proporcionava melhor capacidade de transposição de terrenos bravios em diferentes condições de carga mesmo com tração traseira simples, exatamente em função do motor traseiro, a Kombi ainda hoje é uma referência tal qual o Fusca, e mesmo que a intrusão do compartimento do motor na área de carga possa ser tratada como desvantagem em aplicações especializadas como ambulâncias ou viaturas de polícia vale destacar que a própria Volkswagen chegou a alegar em peças publicitárias que a abertura lateral para acesso ao salão traseiro voltada para a calçada (considerando o tráfego no Brasil se dar pela mão francesa) seria mais eficiente que acomodar cargas pela parte traseira como nas pick-ups de origem predominantemente americana que antes reinavam entre os utilitários no mercado brasileiro, e apesar de ter permanecido com uma tampa traseira demasiado estreita até o ano-modelo '96 também chegou a ser usada até como ambulância e viatura de polícia em versões adaptadas mantendo a garantia de fábrica. A Kombi teve a fabricação no Brasil iniciada em '57 e portanto antes do próprio Fusca, e encerrada só em 2013 sob alegações de incompatibilidade com a obrigatoriedade de airbag duplo e freios ABS a partir de 2014, mas de qualquer jeito seria nula qualquer probabilidade de ter existido a Kombi sem que o Fusca a tivesse antecedido e dado origem à própria Volkswagen ainda na Alemanha...

Por mais que o Fusca seja praticamente impossível de ter apresentado um efetivo sucessor sob diversas perspectivas, ao contrário da Kombi que exerceu certa influência em gerações posteriores de utilitários mesmo que substituíssem a configuração de motor traseiro por outras mais conservadoras com o motor dianteiro e tração traseira ou até motor e tração dianteiros, possivelmente essa singularidade favoreça o simbolismo do Fusca permanecer tão indissociável de um período de modernização do Brasil que ainda ecoa em alguns momentos e aspectos da cultura contemporânea. O acesso a veículos com projeto mais moderno é incapaz de apagar o legado do Fusca como primeiro carro a ter sucesso com uma proposta popular no Brasil, e fortemente associado ao Brasil mesmo sendo um projeto originalmente alemão que também exerceu uma influência comparável no México onde foi fabricado de '67 a 2003 e encerrando a produção mundial do Fusca. Enfim, embora alguns questionem os méritos próprios do Fusca no âmbito técnico, bem como uma aparente letargia dos fabricantes japoneses que foram os primeiros a desafiar na década de '70 aquela hegemonia mundial que a Volkswagen tinha no mercado de veículos compactos, o Brasil certamente não seria o mesmo sem o Fusca.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

5 motivos pelos quais o motor 2-tempos ainda mereceria uma sobrevida nas motos generalistas

Um tema que desperta discussões acaloradas, tendo em vista um entusiasmo que os motores 2-tempos ainda despertam junto a uma parte dos motociclistas por uma percepção de maior esportividade que se associou aos mesmos no Brasil em contraste com a imagem de simplicidade e resiliência a negligências na manutenção que os caracterizaram aos olhos de muitos asiáticos. Tomando a Yamaha RD 135 como referência por ter sido a última moto de perfil efetivamente generalista com motor 2-tempos vendida no Brasil, onde permaneceu em linha até '99 já como modelo 2000, é inegável que entre tantas diferenças conceituais podem ser apontadas vantagens e desvantagens, bem como alguns desenvolvimentos mais recentes e portanto restritos a modelos incomparavelmente mais especializados e importados podem dar a entender que ainda seria justificável que motores 2-tempos tivessem uma sobrevida nesse segmento. E ao menos 5 motivos me parecem razoáveis para, em que pese na atualidade absolutamente ninguém os levar mais a sério para um eventual uso em carros, a situação no mercado motociclístico ainda poderia ser diferente...

1 - lubrificação automática: embora o câmbio use o mesmo tipo de óleo das motocicletas com motor 4-tempos, muitos modelos que ainda dispunham de motor 2-tempos contavam com um reservatório de óleo separado do tanque de combustível, bem mais prático que tentar calcular a dosagem certa de óleo que deveria ser adicionado à gasolina durante reabastecimentos. Tal método também permitia variações na proporção de óleo em relação ao combustível em diferentes faixas de rotação, gerando economia do lubrificante e minimizando a fumaça, bem como diminuindo a formação de sedimentos carbonizados ao redor do eletrodo da vela de ignição. Vale lembrar que em muitos países asiáticos a antiga preferência pelo motor 2-tempos nas motocicletas devia-se a parecer mais fácil adicionar óleo à gasolina ou manter abastecido um tanque separado de óleo ao invés de fazer a troca de óleo de motores 4-tempos conforme os intervalos especificados pelo fabricante;

2 - evolução dos sistemas de injeção eletrônica: desde aqueles kits para retrofit de injeção direta que a ONG americana Envirofit propunha para uso em motos com motor 2-tempor e carburador nas Filipinas com base na tecnologia desenvolvida pela Orbital Engines australiana, e que ainda chegou a ser testada exaustivamente pela Ford na Europa e na Austrália para usos automotivos que acabaram engavetados, em que pese hoje ser comum a injeção direta em motores 4-tempos para uso automobilístico em meio a uma expansão do uso do turbocompressor, a injeção eletrônica que parecia mais facilmente adaptável a motores 4-tempos de modo geral também teve alguns desenvolvimentos especificamente direcionados a motores 2-tempos para uso em motos KTM e Husqvarna de competição off-road. Mesmo que a injeção direta tenha alguma complexidade, e posteriormente efeitos colaterais como aumentos nas emissões de material particulado devido a uma vaporização incompleta da gasolina antes da ignição e ao menos em motores 4-tempos também ocorrer um aumento dos óxidos de nitrogênio, a KTM ter passado a usar um sistema de injeção nas janelas de transferência (TPI - Transfer Port Injection) é capaz de proporcionar uma eficiência comparável à da injeção direta por só injetar quando as janelas de escapamento estejam fechadas durante a subida do pistão, eliminando perdas de mistura ar/combustível crua que ocorrem em motores carburados. O fato de ser irrelevante o uso de combustíveis gasosos em motos e similares, com exceção da Índia onde alguns triciclos utilitários tem versões aptas a usar gás natural ou gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha") e da China onde chegaram a ser fabricadas motos movidas a gás, também favoreceria o uso da injeção nas janelas de transferência, tendo em vista que motores 2-tempos poderiam ser ainda mais problemáticos que um motor 4-tempos de injeção direta no tocante à perda de combustível cru se fossem aplicados kits GNV comuns com os injetores adaptados junto ao coletor de admissão como se faz normalmente;

3 - simplicidade de alguns métodos para proporcionar maior elasticidade: enquanto para motores 4-tempos o desenvolvimento do comando de válvulas variável permitiu conciliarem um bom torque em baixa rotação a um desempenho menos "estrangulado" em alta rotação, nos motores 2-tempos o recurso a válvulas do tipo palheta na admissão que abrem pelo vácuo gerado no cárter durante a admissão e de um restritor nas janelas de escape cuja posição varia de acordo com a rotação proporciona resultados de certa forma análogos, permitindo um dimensionamento das janelas que favoreça o desempenho em alta rotação sem deixar o motor demasiadamente fraco em regimes mais modestos. Apesar da Yamaha só ter equipado com o sistema YPVS (Yamaha Power Valve System) no escapamento modelos com proposta mais sofisticada ou especializada que a RD 135, e o controle eletrônico usado nas motos de rua ter sido substituído pelo acionamento mecânico em algumas motos de competição que tinham o óleo misturado à gasolina porque o acionador mecânico para o YPVS era instalado onde de outra maneira poderia ficar a bomba de óleo do Autolube, o fato da injeção eletrônica já ter sido desmistificada nas motos talvez fizesse desconfianças quanto a um acionamento eletrônico do YPVS ficarem para trás;

4 - leveza e tamanho compacto: embora muitos motores 4-tempos atualmente mais usados nas motos generalistas modernas passem longe de ser excessivamente pesados e volumosos, é impossível negar que um motor 2-tempos possa ser invariavelmente mais leve e compacto simplesmente pela ausência de um sistema de válvulas convencional com o respectivo comando, diferença especialmente mais notável no cabeçote e que permitiria até uma posição mais centralizada da vela de ignição que pode favorecer uma propagação mais homogênea da centelha por toda a câmara de combustão;

5 - indução forçada ter pouca demanda nas motos: proporcionalmente em comparação aos carros, menos experiências com o turbocompressor foram feitas em motocicletas, tanto por fabricantes quanto por proprietários, e sempre mais restritas a motores 4-tempos porque um sistema de lubrificação por recirculação do óleo sob pressão é essencial para assegurar a durabilidade de um turbo. Até é possível usar um supercharger/blower em motores 2-tempos porque esse tipo de compressor mecânico pode ser lubrificado por salpico e com um circuito de óleo separado do restante do motor, a exemplo do que foi aplicado em motores 4-tempos pela Ford nas versões Supercharger do motor Zetec-Rocam 1.0 que chegou a concorrer com motores 1.0 Turbo da Volkswagen por um período um tanto curto depois do ano 2000.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

10 veículos eventualmente improváveis que de alguma maneira acabaram cumprindo alguma das funções atribuídas ao Ford Modelo T

Um ícone histórico e cultural que dispensa maiores apresentações, produzido de 1908 a 1927, o Ford Modelo T é creditado como o pioneiro do que viria a ser um conceito de carro popular, embora algumas condições de diferentes regiões tenham dificultado atingir o mesmo resultado observado nos Estados Unidos onde o automóvel foi efetivamente difundido junto ao grande público. E até em parte por questões econômicas, bem como pela necessidade de veículos eventualmente mais austeros que foram de grande valia na reconstrução de países afetados diretamente pelas batalhas mais sangrentas da II Guerra Mundial, houve espaço para alguns modelos de diversos fabricantes, segmentos e origens atenderem a uma ou mais premissas que o Ford Modelo T foi desenvolvido para atender de acordo com a realidade americana de quando foi lançado. Dentre tantos, convém destacar 10 desses veículos emblemáticos...

1 - Fiat Uno: embora nunca tenha chegado a ser vendido nos Estados Unidos, bem como o modelo brasileiro ter diferenças comparado ao original italiano, teve um grande sucesso comercial, e ainda permanecendo relevante em mercados "emergentes" a ponto de ter seguido em produção no Brasil até 2013 com poucas alterações. Recentemente passou a ser muito apreciado em regiões rurais do Brasil, o que invariavelmente fomenta uma comparação com o Ford Modelo T que teve desde a fase de projeto a intenção declarada de atender a fazendeiros americanos. Outro aspecto digno de nota quanto ao Fiat Uno foi a versão Mille, que era produzida no Brasil inicialmente para exportação à Itália como uma alternativa mais barata, também ter sido lançada no Brasil em '90 no âmbito do programa de incentivo ao carro popular instituído pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello e consolidado em '93 com o ex-presidente Itamar Franco que chegou a negociar com a Volkswagen um retorno do Fusca. Já na presidência de Fernando Henrique Cardoso, o encerramento de uma alteração nas normas do programa do carro popular que permitiu à Volkswagen incluir o Fusca e até a Kombi mesmo com o motor de 1.6L por ser refrigerado a ar, enquanto para motores de refrigeração líquida prevaleceu o limite de 1.0L pleiteado pela própria Fiat no governo Collor, o Mille ficou consolidado como um dos principais símbolos da época do início do programa dos carros populares;

2 - Vespa: um dos veículos mais improváveis que poderiam ser tratados como "herdeiros" do Ford Modelo T, mas que foi fundamental na recuperação da Itália no pós-guerra, com um motor tão simples quanto versátil, foi  principal referência de moto pequena antes da ascensão da indústria japonesa também em países tão diversos quanto Brasil, Índia e Indonésia. A vasta oferta de equipamentos e preparações visando melhor desempenho até podem ser comparadas aos primórdios da cultura dos hot-rods, que apesar de hoje ser mais associada aos motores V8 começou ainda na época do Ford Modelo T com "só" 4 cilindros. É pertinente observar também o caso do Piaggio Ape, triciclo utilitário derivado da Vespa que até se aproxima do Ford Modelo T ao observarmos a velocidade máxima um tanto limitada em comparação a carros modernos, ou até a carros da mesma época que o Piaggio Ape surgiu durante o pós-guerra.
E em contraste ao pouco sucesso comercial no Brasil, onde por motivos políticos houve uma preferência do ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira por incentivar a produção de automóveis em detrimento de motocicletas e assemelhados, fazendo com que o Piaggio Ape produzido sob licença pela Panauto no Rio de Janeiro tivesse pouca adesão, a produção na Índia tanto sob licença por empresas como a Bajaj quanto mais recentemente por uma filial da própria Piaggio é comparável à importância do Ford Modelo T para a massificação do veículo motorizado nos Estados Unidos;

3 - Citroën 2CV: apesar da suspensão muito sofisticada, visando proporcionar a maciez para transportar um cesto de ovos a 60km/h através de um campo recém arado, e pela tração dianteira, o Citroën 2CV consegue ser ainda mais minimalista que o Ford Modelo T e buscava também um público rural. Acabou fazendo sucesso também junto a um público urbano em diversos países além da França, sendo produzido entre outros também na Argentina, na Espanha, em Portugal onde só saiu de linha em '90 após um longo ciclo de produção total de 42 anos a nível mundial, e até na Inglaterra também foi fabricado.
Embora o rústico motor boxer de 2 cilindros refrigerado a ar tenha sofrido alterações ao longo do tempo, como alguns incrementos na cilindrada até chegar a 602cc e passar à puissance fiscale de 3CV com o intuito de alcançar um desempenho que conferisse mais versatilidade até em eventuais trechos rodoviários, o Citroën 2CV incorporou bem as pretensões de ser uma ferramenta de trabalho para fazendeiros europeus e até da Austrália onde a versão inglesa chegava sem imposto de importação pela preferência imperial, e também em partes da África e do Oriente Médio. Mostrar fotos de um Citroën 2CV a um senegalês é garantia de despertar sentimentos nostálgicos;

4 - Opel Corsa B: rebatizado como Chevrolet no Brasil, onde foi o primeiro popular com injeção eletrônica, ainda foi muito relevante em outras regiões da América Latina e até da Ásia e da África antes da marca Opel perder relevância na estratégia da General Motors fora da Europa. Kits CKD fabricados no Brasil abasteceram a produção na África do Sul, onde era vendido como Opel, e quando a GM buscou retomar as presenças na China e na Índia o Corsa também foi ponta de lança. E vale destacar também que no México, onde era denominado Chevrolet Chevy, conseguiu a façanha de pôr fim ao antigo reinado do Fusca/Vocho;

5 - Nissan B140: produzida de '71 a '94 no Japão, e de '76 a 2008 na África do Sul onde é mais conhecida simplesmente como Nissan Bakkie, pode parecer incoerente apontar um utilitário derivado de um carro compacto japonês como eventual "herdeiro" do Ford Modelo T. O lançamento mundial ter sido só depois da implementação da Chicken Tax nos Estados Unidos também inviabilizou a oferta naquele que era então o maior dentre os mercados automobilísticos, embora tenha feito algum sucesso em regiões como a Ásia, a Austrália e a África, tendo chegado até a países da América Latina como o Uruguai. A leveza, o tamanho compacto, a mecânica simples e o longo ciclo de produção sem alterações tão drásticas, a ponto de só ter saído de linha quando normas de emissões na África do Sul inviabilizariam continuar a produção com carburador e sem catalisador, favorecem a comparação ao Ford Modelo T;

6 - Passat B1: pode soar controverso um carro que no Brasil era "de rico", mas cabe lembrar que carro em geral na época do Ford Modelo T era coisa de rico no Brasil. A produção para os principais mercados internacionais entre '73 e '81, enquanto no Brasil foi de '74 a '88 em parte pelo sucesso da exportação para países tão variados quanto o Iraque, a Nigéria, as Filipinas e até a Indonésia ter sustentado um bom volume de produção. Era um modelo moderno para a época, e essencial para a Volkswagen ter alguma relevância diante da concorrência japonesa, enquanto visava se desvencilhar da imagem de fabricante de um só modelo relevante, no caso o Fusca. Embora nunca tenha contado no Brasil pela opção de câmbio automático, que permite uma alusão à ausência de um pedal de embreagem no Ford Modelo T pelo câmbio semi-automático de duas marchas, esse recurso ter estado em catálogo tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e na Austrália por exemplo atendia bem a uma parte do público mais exigente. O Passat atendia bem ao uso familiar, e teve uma presença global significativa à época que até permitia comparar ao Ford Modelo T nesse mesmo âmbito, embora atendesse com mais desenvoltura a um público urbanizado que se distanciava do caráter essencialmente utilitário do Ford Modelo T e do Fusca. Com uma mecânica que além de simples e confiável ainda serviu para experiências com o etanol tanto em larga escala no Brasil quanto em caráter mais experimental em países como as Filipinas, também justifica a semelhança conceitual com o uso do álcool de milho no Ford Modelo T por fazendeiros dos Estados Unidos que o produziam por conta própria;

7 - Ford Falcon: embora nunca tenha sido tão icônico nos Estados Unidos, ofuscado por um fogo amigo dos full-size, a primeira geração do Falcon fez muito sucesso na Argentina, e deu início a uma longa evolução na Austrália. Além de um custo menor que o dos full-size ter favorecido a inserção em mercados internacionais, acabou sendo relativamente fácil de adaptar a condições de rodagem mais severas, embora fossem mais suaves em comparação às esperadas para o Ford Modelo T;

8 - Jeep Willys: vale começar lembrando que a Ford manteve a produção do Jeep CJ-5 no Brasil de '67 a '83, tendo até oferecido uma opção de motor a álcool/etanol. Outro ponto que favorece comparações ao Ford Modelo T é o sucesso do Jeep no pós-guerra junto ao público rural, tendo contado até com opções como uma tomada de força traseira para acionar diversos implementos e acessórios. A carroceria aberta remete à prevalência das carrocerias tipo "torpedo" na época dos calhambeques, e portanto o Jeep era capaz de reter um público tradicional que havia se distanciado dos carros americanos devido ao tamanho exagerado que praticamente virou regra no pós-guerra. E apesar de outros países como a Espanha e a Índia onde foi o CJ-3B que alcançou maior destaque com a produção sob licença, situação que também aconteceu no Japão onde algumas versões do Jeep CJ-3B produzidas pela Mitsubishi foram comercializadas até '97, é inegável como o Jeep Willys é um "herdeiro" do Ford Modelo T;

9 - Toyota Corolla E90: também conhecida como FX, essa geração do Corolla tem pouca presença no Brasil, mas foi a que consolidou definitivamente o Corolla a nível mundial. Ter padronizado a tração dianteira por toda a linha certamente favoreceu o conceito da manufaturabilidade, caraacterística muito destacada com relação ao sucesso do Ford Modelo T com a implementação das linhas de montagem. Algumas versões do Corolla E90 ainda terem sido disponibilizadas com tração nas 4 rodas remetem a experiências como os kits de conversão desenvolvidos por Jesse Livingood para o Ford Modelo T contar com tal recurso;

10 - Honda Cub: considerando também os inúmeros modelos derivados, bem como as pontuais alterações no motor horizontal de 1 cilindro, vale lembrar que Soichiro Honda já tomava como referência o método fordista de produção em série. O destaque para o câmbio semi-automático, que atenderia à necessidade de operadores comerciais como para fazer entregas rápidas a domicílio e também proporcionava certa facilidade a usuários inexperientes, também fomenta a comparação ao Ford Modelo T.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Vespa: o verdadeiro "Fusca das motos"?

Sem sombra de dúvidas a Vespa é um veículo icônico, e especialmente relevante para que a categoria de scooters ganhasse projeção mundial. Do meio de transporte austero e útil para a reconstrução italiana no pós-guerra até ser alçada a um patamar de destaque na cultura italiana moderna, ter peculiaridades que a diferenciavam de uma concepção mais ortodoxa das motocicletas também justifica até analogias com o choque que causou um dos carros mais reconhecidos por diferentes gerações no Brasil e que também provinha de um país europeu, a bem da verdade afetado mais pesadamente pelas duas grandes guerras mundiais. E se um contexto histórico semelhante já seria suficiente para comparações, há ainda fatores de ordem mais técnica e de posicionamento de mercado que se revelam mais parecidos do que se poderia esperar.


Naturalmente a comparação ao Fusca é inevitável, porque apesar de ter sido originalmente projetado no entreguerras como parte da propaganda nacional-socialista ao invés de ter sido desenvolvido às pressas no pós-guerra também foi muito útil na Alemanha Ocidental e em mercados de exportação que incluíam o Brasil antes de ser estabelecida também a fabricação local. O claro contraste diante de uma concepção mais próxima dos calhambeques que ainda se observava nos carros americanos, que se mantinham mais influentes no Brasil antes da Volkswagen ter conquistado exatamente graças ao Fusca uma liderança no mercado brasileiro que permaneceu por décadas, também acaba sendo uma semelhança conceitual pela pouca ortodoxia técnica. E a relativa simplicidade de manutenção e operação comparada a concorrentes mais tradicionais, cuja maior complexidade mecânica associada ao tamanho e peso menos convenientes no uso urbano favoreciam uma opção "revolucionária" à primeira vista, favoreceram a rápida ascensão de ambos os modelos em mercados internacionais tão diversos quanto os Estados Unidos ou países em desenvolvimento em regiões periféricas que incluíam o Brasil e partes da Ásia.

E embora a rápida ascensão da indústria automobilística japonesa a nível mundial que desbancou o Fusca da posição de destaque entre os carros econômicos já na década de '70 tenha demorado a ter um reflexo no Brasil, a situação no setor motociclístico foi ainda mais rápida com a Honda CG 125 fazendo o conceito de "Universal Japanese Motorcycle" fincar raízes que a fazem ser às vezes apontada como se fosse um "Fusca de duas rodas" exatamente pela popularidade que conquistou no mercado brasileiro. O projeto foi declaradamente voltado a países emergentes, onde o motor de comando de válvulas no bloco e sem corrente de comando teria grande importância para a Honda conquistar a fama de confiabilidade, e superar tanto a Vespa e similares quanto as motos de outros fabricantes japoneses como a Suzuki e a Yamaha que por muito tempo persistiam em motores 2-tempos porque a simplicidade parecia mais fácil de assimilar para usuários um tanto relapsos quanto a manutenções preventivas. Naturalmente o fato da antiga CG "varetada" ter o motor refrigerado a ar e o comando de válvulas acionado só por engrenagens também seria assimilado com relativa facilidade em um Brasil onde o Fusca já se destacava no mercado automobilístico, e a acelerada urbanização durante o Milagre Econômico Brasileiro ocorrido no regime militar seguido pela primeira crise do petróleo proporcionavam condições ideais para a Honda avançar a ponto de conquistar entre as motos uma hegemonia comparável à que a Volkswagen detinha na época áurea do Fusca no mercado brasileiro. 
Se por um lado a Honda CG 125 foi útil para a Honda tanto no Brasil quanto principalmente em partes da Ásia e África onde variações do modelo "varetado" seguem em produção, por outro a produção sob licença de modelos derivados da Vespa em países como a Índia onde a Bajaj Chetak preservava o viés essencialmente utilitário mesmo quando uma demanda pela Vespa original como ítem de colecionador oportunizava exportações da scooter indiana sob o apelo da nostalgia remete à busca por Volkswagens brasileiros e mexicanos antigos para atender a uma demanda semelhante em outros países. E apesar da Honda CG 125 ter sido também copiada à exaustão na China, onde derivados seguem em produção até a atualidade tanto seguindo mais à risca o projeto original do motor quanto com pequenas alterações, os derivados da Vespa acabavam preservando com mais fidelidade algumas peculiaridades que identificam facilmente a origem como a suspensão dianteira que suporta a roda por um único lado para facilitar uma rápida substituição do pneu caso seja furado, sendo possível fazer também uma comparação com o uso de motor traseiro no Fusca e em derivados feitos tanto pela própria Volkswagen ou pelas importadoras encarregadas da montagem em regime CKD como ocorria nas Filipinas quanto por outras empresas.

Outro aspecto que pode reforçar uma certa similaridade entre Vespa e Fusca no tocante à popularidade é que ambos deram origem a um veículo utilitário de reconhecida versatilidade, embora os derivados da Vespa recorressem à configuração de triciclo tanto no caso do Piaggio Ape original quanto as inúmeras cópias indianas incluindo modelos Bajaj que chegaram a ser brevemente importados pela Kasinski para o Brasil entre 2001 e 2004. Mesmo assim, alguns detalhes estéticos mais evidenciam semelhanças com a Vespa que as ocultam, e nem as substituições dos motores compartilhados com a Vespa por outros de configurações diferentes como 4-tempos a gasolina ou até Diesel a depender do país justificariam dizer que o projeto básico teria ficado totalmente irreconhecível. E considerando desde o Piaggio Ape como uma importante ferramenta na reconstrução da Itália no pós-guerra quanto a relevância dos modelos de fabricação indiana na atualidade em diferentes regiões onde triciclos utilitários são mais apreciados que no Brasil, uma analogia da Vespa e do Piaggio Ape com a relação entre a Kombi e o Fusca também fica inevitável, guardadas as devidas proporções em função das respectivas capacidades de carga e da baixa velocidade máxima entre os triciclos derivados da Vespa desencorajar eventuais incursões rodoviárias...

Uma semelhança mais subjetiva, mas que também reforça a percepção quanto à Vespa ser algo como o equivalente motociclístico do Fusca, é a abordagem das peças publicitárias voltadas aos Estados Unidos destacando a simplicidade e a economia operacional de ambos os veículos em comparação a um carro americano típico das décadas de '50 a '70. Por mais que diferenças óbvias de ordem técnica entre motos e carros de um modo geral já fossem observáveis, o fato de Vespa e Fusca terem sido apresentados com pretensões comparáveis à maior demanda pela moto como uma alternativa ao carro "popular" no Brasil atual onde a indústria automobilística tem priorizado alguns segmentos mais pretensamente sofisticados também os aproxima mais que os distancia. Enfim, levando em consideração desde uma importância no início da indústria de veículos no Brasil quanto contextos internacionais, a Vespa acaba sendo de fato o "Fusca das motos".