sábado, 27 de janeiro de 2018

Observações sobre triciclos e a "síndrome de vira-lata" brasileira

Um tipo de veículo que não tem as qualidades tão reconhecidas no Brasil, geralmente vistos ou como algo exótico de países terceiro-mundistas no caso dos "tuk-tuks" do sudeste asiático ou como um "brinquedão" tomando por referência a infinidade de modelos artesanais feitos geralmente a partir de um conjunto mecânico Volkswagen. Não é incomum que seja apontada uma junção de desvantagens das motos e dos carros em qualquer tópico referente aos triciclos, ignorando benefícios que possam eventualmente oferecer. E além do mais, sendo o próprio Brasil um país subdesenvolvido, poderia o aparente desprezo do grande público com relação aos triciclos inibir até mesmo oportunidades para melhorar as condições econômicas e sociais?

No segmento recreacional, ainda que alguns motociclistas mais "ortodoxos" resistam aos apelos de uma maior estabilidade e conforto, triciclos de concepção moderna como o Can-Am Spyder atraem quem aprecie a sensação de liberdade e contato com os elementos pelo trajeto fortemente associada às motocicletas, contando com versões tanto de apelo mais esportivo quanto turístico. A largura total, impedindo o uso dos "corredores" entre as faixas de rodagem, não deixa de se tornar até certo ponto um inconveniente em algumas situações de trânsito intenso, enquanto uma moto pode se desvencilhar mais facilmente dos engarrafamentos e ganhar mais tempo para cair na estrada. Mas ao contrário de triciclos utilitários, os modelos recreacionais ainda encontram um público bastante cativo, podendo ser feita uma analogia com a situação dos carros conversíveis que também são tratados pelo mercado brasileiro como um mero "brinquedo" ainda que possam eventualmente atender à maior parte das necessidades de transporte privado de alguns usuários.

Triciclos utilitários de origem italiana derivados das pioneiras scooters Vespa e Lambretta, no caso o Vespacar que nada mais era do que uma versão brasileira do Piaggio Ape e o Lambrecar que seria o equivalente ao Innocenti Lambro, chegaram a encontrar um momento de popularidade especialmente durante os anos '60 após demonstrarem um grande valor no esforço de reconstrução da Itália e demais países europeus devastados pela guerra. Já no Brasil, nem mesmo a onda desenvolvimentista em meio ao regime militar foi capaz de promover uma maior inserção dos triciclos em segmentos que a indústria automobilística instalada no país não atendia tão adequadamente, principalmente nas metrópoles que estavam em plena expansão durante o chamado "milagre econômico" brasileiro e cujo crescimento desordenado agravava as dificuldades de mobilidade nos becos das favelas e nas vielas estreitas dos centros históricos. De fato, ambos os modelos tem uma vocação essencialmente urbana, salientada pela pequena capacidade do tanque de combustível e velocidade máxima na faixa de 60km/h desincentivando percursos rodoviários mesmo numa época em que as principais rodovias tinham limites de velocidade mais modestos.
Ainda que os motores 2-tempos então predominantes nas scooters e derivados fossem relativamente fáceis de "fuçar" para alcançar velocidades compatíveis com o tráfego rodoviário, e as plataformas dos triciclos oferecessem uma certa liberdade para adaptações de acordo com as necessidades dos usuários tanto para aplicações meramente utilitárias/comerciais quanto num uso misto. Mesmo para quem pudesse se dar por satisfeito com o desempenho original, e se beneficiar de um consumo de gasolina modesto para os padrões da época, havia um certo comodismo em torno do baixo preço dos combustíveis que influenciava o grande público a tratar os triciclos como uma mera curiosidade ou como uma "gambiarra" tecnicamente inferior a um carro mais convencional. Assim, qualquer carro compacto da época como o Renault Gordini passava a fazer mais sentido aos olhos dos pobres mesmo quando já estivesse usado e de uma classe média em ascensão que podia se dar ao luxo de comprar um 0km, buscando num veículo motorizado não apenas o aspecto prático mas, principalmente, uma afirmação de progresso econômico pessoal e/ou familiar.

A crise do petróleo na década de '70 fez com que a cultura motociclística brasileira passasse a não ser tão voltada quase que exclusivamente ao uso recreacional, com a Honda desafiando a hegemonia da Vespa nos segmentos de entrada a partir da chegada da CG 125. A agilidade de uma moto em meio ao trânsito cada vez mais intenso e a facilidade para estacionar se mostram convidativas até hoje, mas de certa forma acabou fomentando a consolidação da percepção dos triciclos como uma junção das desvantagens da moto no tocante à segurança e conforto com a menor manobrabilidade de um carro. Assim, mesmo que um triciclo pudesse representar também um meio-termo entre o baixo custo operacional de uma motocicleta e as capacidades de passageiros e bagagem de um carro pequeno, ficava bastante difícil tentar desafiar o reinado do Fusca...

Triciclos utilitários encontraram um novo momento de relativa popularidade a partir de 2001, quando a Kasinski deu início à importação de alguns modelos indianos produzidos pela Bajaj que eram na prática uma atualização do antigo Piaggio Ape/Vespacar equipados com motor 4-tempos, tanto em versões de carga (MotoKar) como a da foto acima quanto de passageiros (Táxi-Kar) como a que abre o artigo. O custo era atrativo diante de utilitários mais convencionais de 4 rodas, bem como o baixo consumo de gasolina, mas a vocação essencialmente urbana tornou-se novamente o calcanhar de Aquiles e fez com que as importações fossem encerradas por volta de 2004. Ainda que os pequenos triciclos fossem uma alternativa na medida certa para algumas empresas ou mesmo uma oportunidade de negócio para empreendedores, infelizmente não tiveram uma aceitação tão expressiva por um público mais amplo que dá preferência a veículos que oferecem um desempenho compatível não só para a cidade mas também para rodovias como é o caso das pick-ups pequenas que já se tornaram uma "tradição" brasileira.

A falta de opções mais adequadas fez com que conversões de motos em triciclo, feitas principalmente com a linha da Honda CG 125 e 150 e imitações de origem chinesa, conquistassem uma participação mais expressiva no mercado. Ao menos em Porto Alegre, houve um surto de popularidade iniciado por volta de 2008 a 2011, com alguns remanescentes dessa época ainda em serviço principalmente na entrega de botijões de gás de cozinha e garrafões de água mineral. Naturalmente, o cockpit totalmente aberto como na moto original não é tão confortável ou seguro, expondo o condutor não só aos fatores climáticos adversos mas também a outros eventuais riscos como ser atingido por objetos e detritos arremessados em direção ao veículo de forma acidental ou até intencional. O uso para transporte individual, com a possibilidade de levar um passageiro, não é tão frequente como nos triciclos de maior cilindrada desenvolvidos para fins recreativos, mas encontrou alguma receptividade principalmente por deficientes físicos.

Para alguns potenciais usuários que não sejam muito familiarizados com motocicletas, e às vezes nem tenham qualquer interesse em adicionar a categoria A na carteira de habilitação pelas mais diferentes razões, triciclos com cockpit de padrão automobilístico até podem se tornar uma alternativa viável. Já tornaram-se populares na China, onde se encontram a maioria dos fabricantes desse tipo de veículo, e tem ganhado espaço em países vizinhos como o Uruguai e a Argentina, enquanto a inserção no Brasil ainda vai a passo de tartaruga. Talvez o principal empecilho seja uma eventual dificuldade de ordem burocrática, visto que os comandos semelhantes aos de um carro convencional acabam destoando do que normalmente se vê nos triciclos, o que dá margem a indefinições quanto a qual classificação seria mais coerente não só para fins de habilitação mas também no âmbito do enquadramento em normas de segurança. Países como os Estados Unidos e a Inglaterra permitem a condução de triciclos com carteira de habilitação para moto sem distinção entre a configuração dos comandos, de modo que a exigência de equipamentos de segurança para veículo e condutor (e passageiros quando aplicável) é basicamente a mesma das motos, embora nos modelos com cabine fechada devidamente dotados de cintos de segurança seja dispensado o uso do capacete (no Brasil ainda se exige o capacete quando o veículo for trafegar em rodovias estaduais ou federais). Ainda seria mais provável que uma eventual norma brasileira adotasse uma harmonização com o padrão adotado pelo Uruguai, fazendo distinção entre os triciclos com guidon que são classificados como assemelhado a moto e os com volante que passam a ser legalmente um carro.

Um problema que se originou dessa questão foi a impossibilidade para homologar e licenciar alguns triciclos chineses importados pela empresa catarinense Hedesa, tendo em vista que a configuração de cabine semelhante à de uma pick-up de pequeno porte subsidiaria um entendimento semelhante ao que foi definido no Uruguai, e assim seria aplicável no Brasil a obrigatoriedade de equipamentos como freios ABS, airbag duplo, e futuramente controle de estabilidade. Tendo em vista que um dos principais argumentos de vendas para um triciclo utilitário é essencialmente o custo de aquisição mais baixo, a inclusão de alguns dispositivos de segurança que não são exigidos em motos trouxesse um impacto proporcionalmente maior sobre os preços em comparação ao que ocorreu a partir de 2014 no mercado automobilístico. Assim, diante da percepção equivocada por parte dos consumidores com relação a uma suposta "inferioridade" técnica das motos e assemelhados, infelizmente acabou por se tornar comercialmente inviável a proposta de um cockpit com padrão automotivo, de modo que os triciclos continuem exercendo mais atração sobre quem já tenha experiência prévia com motocicletas ou procure por uma alternativa com mais estabilidade e capacidade de carga.

Num contraponto à percepção de que o caráter meramente utilitário associado a alguns triciclos desde a época do Lambrecar até as adaptações mais recentes normalmente feitas a partir das motos Honda CG poderia desincentivar algum uso para fins de transporte individual ou de passageiros em âmbito familiar, convém tomar como referência o caso das "woody-wagons" que reinaram absolutas durante o imediato pós-guerra ou as pick-ups com cabine dupla artesanal que tiveram alguma popularidade no Brasil especialmente na década de '80. Por mais que um triciclo esteja distante da imagem mais aspiracional que um carro ou caminhonete possa transmitir aos emergentes de plantão, o princípio de "desvirtuar" a proposta de um veículo utilitário é basicamente o mesmo. Diga-se de passagem, hoje pesa a favor dos triciclos o menor espaço que ocupam no leito carroçável das vias ou em áreas para estacionamento, tendo em vista o trânsito mais congestionado e a saturação que já se observa na malha viária de cidades médias e grandes, de modo que um veículo de porte mais generoso pode se tornar um empecilho quando for usado no dia-a-dia sem ter as capacidades de carga e/ou passageiros efetivamente aproveitadas.

Em meio a tudo o que se tem falado em torno da "sustentabilidade" e da economia de combustível, é fundamental que o brasileiro passe a reconhecer os triciclos como uma opção de transporte mais econômica, eventualmente indo além do transporte de cargas onde se tornou mais comum. O alto preço dos carros "populares" novos, cada vez mais distante da proposta original da categoria, também soa convidativo ao uso de triciclos para levar passageiros. Enfim, é preciso deixar de lado a "síndrome de vira-lata", e reconhecer os benefícios econômicos, ecológicos e sociais que um transporte barato e relativamente seguro possa trazer ao invés de tratar como "gambiarra"...

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Ré em motos: mais útil do que poderia inicialmente parecer

Um assunto que sempre acaba fomentando polêmicas quando o assunto é moto, a disponibilidade de marcha-à-ré em alguns modelos mais sofisticados como a Honda Gold Wing é um daqueles aparentes "excessos" que na prática se revela até bastante adequado. O peso elevado, característica comum não só à Gold Wing mas também a outras motocicletas turísticas de grande cilindrada, acaba se tornando um empecilho na hora de executar pequenas manobras ao estacionar, especialmente quando houver desníveis ou irregularidades no pavimento. Portanto, a facilidade de contar com a ré pode contribuir para uma experiência de condução mais prazerosa ao acarretar num desgaste físico menos severo para o piloto.
O sistema usado para prover reversão na Honda Gold Wing, e em outras motos com transmissão final por eixo cardã como a BMW K1600GTL, usa o próprio motor-de-arranque para movimentar a moto nas pequenas manobras limitadas por segurança à velocidade de um homem em passo. Se por um lado exige-se que tal componente seja mais reforçado e tenha um outro acoplamento específico para essa função, por outro evita um acréscimo de peso e atritos internos no câmbio original que seriam necessárias para inclusão da marcha-à-ré totalmente mecânica, além do acoplamento direto do motor-de-arranque ao eixo cardã não acarretar desgaste da embreagem durante o uso da ré. É importante lembrar que, para evitar danos ao sistema ou até acidentes graves, a função de reversor só pode ser usada quando o câmbio estiver em neutro (vulgo "ponto morto").
Diga-se de passagem, no caso da BMW série K, a posição transversal do motor (com referência pelo sentido do virabrequim) e por conseguinte do câmbio soa como um desafio a mais para a estratégia de usar o motor-de-arranque como reversor. Nada que seja tecnicamente impossível de resolver, mas a angulação entre o eixo cardã e o eixo secundário do câmbio torna um pouco mais complicado fazer o acoplamento do motor elétrico para desempenhar ambas as funções, ao contrário do que ocorre em modelos com motor longitudinal como a já citada Honda Gold Wing ou a BMW R1200RT. Portanto, considerando que a série K já conta com marcha-à-ré em algumas versões, chega a ser surpreendente que a série R não conte com essa funcionalidade nem ao menos como opcional.

No caso das motos mais básicas, em que predomina a transmissão final por corrente, fica mais difícil reaproveitar o próprio motor-de-arranque (quando disponível) também como reversor, e portanto o jeito aparentemente menos problemático de adaptar marcha-à-ré seria adicionando um motor elétrico (pode até ser originalmente um motor-de-arranque) exclusivamente para tal finalidade. É improvável que um motoboy que trabalhe com uma Honda CG 125 Cargo,  por exemplo, chegue a sentir falta de ré, e muito menos se disponha a lidar com a complexidade que seria invariavelmente agregada pela instalação de um reversor, mas em algumas motos pequenas transformadas em triciclo utilitário seria impossível negar que a marcha-à-ré traria uma maior comodidade.

Cabe destacar o caso de triciclos utilitários, geralmente de fabricação chinesa e que costumam usar motores copiados da Honda, mas substituem a transmissão secundária de corrente pelo eixo cardã. Embora passem a contar com um reversor mecânico ao invés de recorrer ao uso do motor de arranque para desempenhar a mesma função, nesse aspecto já saem em vantagem diante de tantas adaptações feitas no Brasil a partir de motos comuns. Naturalmente, o fato de hoje o câmbio ser integrado ao cárter do motor na maior parte das motos dificultaria intervenções mais extensas para incorporar uma marcha-à-ré de acionamento mecânico totalmente integrada ao câmbio original, bem como eventuais dificuldades para montar um mecanismo de engate seguro e suficientemente preciso, de forma que não há outra alternativa que não um reversor mecânico externo acoplado ao eixo de saída do câmbio como no caso dos triciclos chineses ou um motor elétrico auxiliar especificamente para a ré.

A maior aceitação do side-car junto a uma parte considerável dos motociclistas brasileiros, não só nas aplicações para transporte urbano de carga mas também como opção para levar um passageiro com mais conforto e segurança, abre outra possibilidade para que se dê mais atenção à possibilidade de instalar reversores em motocicletas. Como seria de se esperar, o side-car altera drasticamente a forma de pilotar a moto e, apesar de também não chegar a se igualar a um carro, acaba comprometendo a facilidade para manobrar em espaços mais restritos. A própria fixação do side-car ao chassi da moto, com alguns pontos de apoio próximos à pedaleira direita do piloto, limitam em demasia o espaço para movimentação da perna direita ao empurrar a moto para trás, fazendo com que estacionar ou sair de algumas vagas torne-se ainda mais difícil.

Outro exemplo que fomenta discussões quanto à viabilidade da adaptação de reversor em motos é justamente o das Harley-Davidson, por serem pesadonas e acabarem atraindo um público de idade cada vez mais avançada que já começa a ter mais dificuldade para estacionar em desníveis ou superfícies menos firmes. Para a série Sportster, por ter o câmbio integrado ao cárter, fica mais difícil incorporar um reversor mecânico e portanto adaptações valendo-se de um motor elétrico auxiliar sejam mais facilmente executáveis, ao passo que nas "big-twins" a carcaça do câmbio separada ainda facilita a adaptação de reversores totalmente mecânicos que já podem inclusive ser encontrados no Brasil. Além de equipamentos importados abrangendo tanto câmbios antigos de 5 marchas quanto o atual de 6, já é produzido no país um kit denominado "Reverse Chief" para adaptação no câmbio de 6 marchas.


Além de aplicações utilitárias/comerciais e recreativas, e levando em consideração o menor custo operacional em comparação a um carro como o principal atrativo para que as motos de pequena cilindrada atraiam muitos consumidores que antes nem sequer as cogitassem como uma opção, a marcha-à-ré também acabaria por acrescentar maior comodidade quando convertidas em triciclo para deficientes físicos. Naturalmente, o custo ainda é o fator que mais inibe a presença da ré em motos, com um impacto até mais exacerbado sobre o preço final no caso dos modelos mais simples. No entanto, apesar de um eventual ceticismo entre uma parte considerável dos motociclistas e de dificuldades técnicas, a ré em motos é de fato mais útil do que poderia parecer.