quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Ford '29 ainda na rodagem

Porto Alegre às vezes surpreende em alguns momentos, como por ainda aparecer de vez em quando um Ford Modelo A que siga em efetiva operação mesmo que extensamente modificado. No caso desse exemplar do ano de 1929, com a carroceria Phaeton típica da época áurea dos calhambeques, logo saltam aos olhos a altura livre do solo menor que a original, e os pneus Pirelli Tornado Beta na medida 7.35-14 original do Dodge Dart. Pelo que me disse o proprietário, que classifica o veículo como "um hot", embora a estética mais sóbria me remeta mais a um street-rod que a um hot-rod propriamente dito, os pneus mais largos no padrão da linha Dodge ficaram mais proporcionais que a medida do Opala, também no aro 14 mas que fica mais estreita e para dentro dos paralamas. Mas o motor Chevrolet com 4 cilindros de 2.5L com válvulas no cabeçote e comando no bloco é o mesmo do Opala, em substituição ao original Ford também com 4 cilindros mas de 3.3L e válvulas laterais. Com as modificações feitas há mais de 30 anos conforme relatado pelo dono, o Modelo A certamente ficou bem mais conveniente para enfrentar as condições de uso contemporâneas, ainda sendo disponível para aluguel e muito requisitado para levar noivas à igreja, graças ao inegável encanto exercido por carros antigos de modo geral.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

5 coincidências entre as obras de Josef Ganz e Amaral Gurgel

Qualquer tema relacionado à história do Fusca ganha contornos bastante polêmicos, mas a redescoberta da história de Josef Ganz pelo público generalista mundo afora ofereceu uma nova perspectiva a quem se opõe ao modelo e por extensão à Volkswagen em função das vinculações com o nacional-socialismo. O engenheiro judeu húngaro Josef Ganz chegou a apostar no projeto de um carro popular materializado num produto com formas aerodinâmicas, guardando uma assustadora semelhança com o que viria a ser o Fusca, embora a máquina de propaganda nacional-socialista encampasse a idéia do carro popular para a Alemanha e ocultado ao máximo as evidências históricas quanto a esse precedente que incomodava ao III Reich. Sob uma perspectiva brasileira, a história de Josef Ganz logo ganha contornos interessantes quando o comparamos a João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que desenvolveu alguns automóveis subcompactos visando a posição de um eventual sucessor para o Fusca, e ao menos 5 coincidências entre as histórias de ambos são especialmente destacáveis:

1 - trabalharam para a General Motors em algum momento da vida: enquanto Amaral Gurgel teve os primeiros contatos com o plástico reforçado por fibra de vidro durante um estágio nos Estados Unidos, Josef Ganz trabalhou na Holden após radicar-se na Austrália onde passou os últimos anos de vida. Josef Ganz ainda era vivo quando Amaral Gurgel estagiou na GM, embora não haja registro de nenhum encontro entre ambos;

2 - tiveram problemas com algum político que preferia o Fusca: já não é mistério que Josef Ganz foi alvo tanto de campanhas difamatórias quanto de ameaças à própria integridade física tanto na Alemanha quanto durante um período que viveu entre a Suíça e a França antes de mudar-se para a Austrália, e o uso do projeto inicialmente denominado Volksauto e posteriormente KdF-Wagen tornando-se uma das principais engrenagens da máquina de propaganda criada por Joseph Goebbels para a ditadura nacional-socialista de Adolf Hitler nos anos '30 e '40 colocava em risco qualquer um que ousasse apresentar uma proposta visando atrair a um público minimamente semelhante. Já no tocante ao favoritismo de Itamar Franco pelo Fusca durante a primeira metade da década de '90, romantizada à exaustão com menções à então namorada que era filha de um senador e tinha um Fusca produzido durante o ciclo anterior do modelo no mercado brasileiro, no fim das contas foi um artifício publicitário para o governo Itamar parecer mais marcante e ao mesmo tempo atrapalhou os planos de Amaral Gurgel que visava oferecer um veículo moderno sem abdicar da aptidão off-road moderada que fomentava a preferência de uma parte do público rural pelo Fusca até '86 quando o modelo saiu de linha no Brasil pela primeira vez. Embora a existência do "Fusca Itamar" não desperte críticas tão exacerbadas entre apreciadores de Amaral Gurgel, certamente teve um peso entre os fatores que culminaram na falência da Gurgel Motores tanto quanto o cancelamento de uma linha de crédito previamente acertada com o Banco do Estado do Ceará para a implementação de uma fábrica de câmbios naquele estado mesmo quando o ferramental já havia sido importado;

3 - apostaram em motores com somente 2 cilindros de inspiração motociclística: tendo em vista que Josef Ganz encontrou incentivo de Willhelm Gutbrod, proprietário da fábrica de motos Standard que viria a produzir o automóvel Standard Superior cuja produção foi encerrada por pressão da ditadura nacional-socialista, a escolha por um motor 2-tempos horizontal com 2 cilindros em linha refrigerado a ar e montado na posição transversal ainda hoje predominante nas motocicletas parecia um tanto óbvia. Amaral Gurgel por sua vez, recorria a um motor de 2 cilindros opostos (boxer-twin ou flat-twin) em posição longitudinal, configuração hoje mais associada às motos BMW Série R. Vale destacar que, enquanto a escolha da refrigeração a ar no Standard Superior valia-se do fato de motos com side-car recorrerem a esse mesmo expediente que as permitia dispensar uma garagem com calefação mesmo no mais rigoroso inverno, os Gurgel BR-800 e Supermini contavam com a refrigeração líquida que viria a demorar mais para chegar às BMW Série R com as quais o motor guarda alguma semelhança;

4 - ofereceram modelos de proposta análoga ao Fusca em tamanhos mais compactos: seja pelas dimensões externas ou pela cilindrada, tanto Josef Ganz quanto Amaral Gurgel apostavam em soluções ainda mais minimalistas que o Fusca propriamente dito. Embora o uso de um chassi tipo espinha dorsal com suspensão independente nas 4 rodas conferisse uma semelhança ainda mais escancarada entre o Standard Superior de Josef Ganz e o Fusca, convém lembrar que acabou sendo mais intermediário entre as dimensões de uma moto com side-car e um automóvel de porte mais convencional tendo em vista a dinâmica do mercado de veículos na Alemanha até o entre-guerras. Já no caso de Amaral Gurgel com o BR-800 e o Supermini, que além de propor uma capacidade de incursão off-road viável para atender ao público rural então fiel ao Fusca ainda precisava conciliar alguma praticidade para usuários com um perfil mais urbano, o tamanho mais compacto acabava sendo interessante à medida que a intensa urbanização do Brasil a partir do regime militar de '64 se mostrava convidativa a essa abordagem para favorecer a manobrabilidade em áreas mais congestionadas. Naturalmente o uso de uma classificação como "sub-Fusca" pode causar alguma insatisfação entre apreciadores da obra de Josef Ganz, tendo em vista que ele acabou por antecipar uma perspectiva de mercado para carros populares explorada à exaustão pela propaganda nacional-socialista, e por ser judeu teve as valiosas contribuições técnicas para o desenvolvimento da indústria automotiva alemã ocultadas pela historiografia oficial da época. Uma interpretação menos controversa da definição de "sub-Fusca" acaba sendo mais facilmente assimilada ao tratar-se dos Gurgel BR-800 e Supermini, tanto pelo público generalista quanto por alguns admiradores da obra de João Augusto Conrado do Amaral Gurgel que demonstrem um apreço mais específico pelo porte compacto dos modelos diante não só do Fusca mas também de alguns "populares" mais recentes;

5 - uso de algum material alternativo nas carrocerias: embora tanto o chassi tipo espinha dorsal do Standard Superior quanto os chassis perimetrais space-frame dos Gurgel BR-800 e Supermini fossem produzidos em aço, os principais materiais usados na fabricação das carrocerias não eram metálicos. No caso do Standard Superior foram usados painéis de madeira e um revestimento em couro sintético e, tendo em vista que não exigiam um investimento maior em ferramentaria como teria sido para estampar painéis de carroceria em aço, com certeza evitaram prejuízos maiores ao empresário Willhelm Gutbrod quando os nacional-socialistas proibiram a fabricação do modelo. Já para Amaral Gurgel, a experiência prévia com o plástico reforçado por fibra de vidro na produção de jipes e utilitários comerciais baseados na mecânica Volkswagen era justificada não só pelo investimento mais modesto com os moldes para a produção dos painéis de carroceria mas também pela resistência à corrosão que era muito valorizada pelo público tradicional dos utilitários Gurgel que antecederam a inserção num segmento generalista e também pelo baixo peso, embora não tivesse sido descartado recorrer ao plástico injetado caso a escala de produção aumentasse o suficiente para justificar investimentos nesse método de moldagem.

Tanto Josef Ganz quanto João Augusto Conrado do Amaral Gurgel tinham propostas interessantes e que se revelavam coerentes com alguma necessidade específica das épocas e regiões onde apresentaram os respectivos projetos destinados a um segmento de automóveis populares que vivenciava transformações significativas em ambas as ocasiões, e disputas contra a Volkswagen não foram as únicas coincidências nas histórias desses gênios incompreendidos. Em que pesem o distanciamento histórico e técnico entre o Standard Superior e os Gurgel BR-800 e Supermini, bem como as experiências que os engenheiros tiveram ao longo das vidas pessoais e profissionais também divergindo em vários aspectos, chega a ser impressionante observar algumas coincidências entre as obras de Josef Ganz e Amaral Gurgel, que vale destacar não estão limitadas às 5 apresentadas...