quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Por quê a Kombi ainda é interessante?

Um utilitário muito austero, mas que ainda foi alçado a uma condição de ícone cultural junto ao Fusca, a Kombi naturalmente pode parecer difícil de justificar em comparação a modelos mais modernos tanto no segmento de vans quanto outras categorias de veículos de uso misto, embora ainda tenha méritos que são impossíveis de ignorar. O layout de motor e tração traseiros que foi crucial para a Volkswagen fazer sucesso em outras épocas, quando o Fusca e a própria Kombi ganharam muita atenção tanto do público urbano quanto pelo interior entre outros motivos pela capacidade de incursão off-road moderada mesmo com tração simples, e a mesma característica quando aplicada também a modelos da antiga Gurgel que usavam mecânica Volkswagen foi crucial para fazer a Ford encerrar em '83 a fabricação do Jeep CJ-5 que teve uma continuidade no Brasil após a compra da operação brasileira da Willys-Overland em '67. E o motor refrigerado a ar, mesmo com aquele dilema de normalmente acarretar num maior consumo de combustível levando em consideração que uma mistura mais rica acabaria servindo até para auxiliar a refrigeração, também permanece atraente por dispensar a necessidade de fluidos de arrefecimento cujo eventual descarte irregular possa causar uma contaminação do solo e lençóis freáticos, e a bem da verdade tais problemas podem ser minimizados se levarmos em consideração um redimensionamento do sistema de refrigeração do óleo que originalmente é usado nesse motor.

A percepção de menor segurança, sobretudo nessa época que SUVs repletos de parafernálias eletrônicas e airbags são o sonho de consumo da classe média, também poderia parecer um motivo para evitar usos recreativos da Kombi, embora seja inevitável também uma comparação às motocicletas também vistas como inerentemente perigosas mas que nem por isso são efetivamente proibidas em qualquer via aberta ao tráfego de veículos (com exceção da Ponte Hercílio Luz por causa do pavimento em grade onde foi proibido o tráfego de motos pelo risco de lesões mais graves a um motociclista em caso de acidente). O único dispositivo de segurança moderno que realmente me pareceria desejável adaptar numa Kombi se fosse o caso de fazer uma restomod para atender às mais variadas condições de uso seria o ABS, devido à efetividade para prevenir acidentes em algumas condições de tráfego e terreno, e a bem da verdade as alegações da Volkswagen para tirar a Kombi de linha no Brasil incluírem uma suposta impossibilidade de instalar freios ABS, e outra vez uma analogia com as motos agora se faz necessária à medida que até motos de pequena cilindrada hoje incorporam esse recurso ao menos na roda dianteira. A meu ver, uma melhoria que seria mais desejável para uso estritamente recreativo seria considerar uma instalação de ar condicionado, ou até climatização evaporativa se fosse o caso, que já serviriam bem para o caso de usar uma Kombi para acampar, bem como eventuais melhorias a serem adaptáveis à motorização e também à suspensão e aos freios para atender às necessidades que o tráfego rodoviário hoje impõe.

Talvez até substituir o motor e o câmbio originais fosse tentador, e na prática deixando só a "casca" da Kombi que traz um melhor aproveitamento da extensão da plataforma de carga em comparação a SUVs de comprimento parecido, e uma direção mais moderna por pinhão e cremalheira e com assistência iria proporcionar ainda mais conveniência. Mas a bem da verdade, mesmo em estado "bruto" a Kombi tem uma aura de aventura que remonta à época dos hippies, bem como a mecânica aparentemente "à prova de burro" que foi uma verdadeira escola para tantos mecânicos brasileiros atrai tanto pela nostalgia quanto pela idéia do próprio dono poder fazer alguns procedimentos de manutenção com ferramentas simples se desejar ou efetivamente precisar, ao contrário de tantos modelos modernos que requerem um treinamento mais específico e ferramentas mais complexas para lidar com alguns componentes do motor. Enfim, mesmo que uma parte considerável do público brasileiro agora considere a Kombi mais como uma curiosidade histórica ao invés de um veículo efetivamente prático que se mantenha adequado tanto para usos a trabalho quanto a lazer, uma combinação de versatilidade e facilidade de manutenção ainda a tornam interessante...

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Por que o motor a pistão nunca foi substituído na aviação geral pelo motor Wankel?

O mercado da aviação é estritamente regulado, o que pode dificultar ou retardar uma implementação de novas tecnologias devido a todas as considerações de segurança durante as homologações efetuadas por entidades como a FAA (Federal Aviation Administration) dos Estados Unidos e a EASA européia, entre outras que acabam tentando harmonizar as próprias regulamentações sobretudo com a FAA, e em parte a hegemonia militar e aeroespacial dos Estados Unidos no imediato pós-guerra ainda tem reflexos nesse cenário. A própria prevalência de motores boxer entre 4 e 6 cilindros com refrigeração a ar em aviões de pequeno porte, que acaba proporcionando algumas similaridades com o motor do Fusca apesar de tantas décadas transcorridas, tem exatamente a ver com questões de confiabilidade e custo da homologação de novos motores, situação que vem gerando desafios à medida que vem sendo fechado um cerco à adição de chumbotetraetila na gasolina de aviação (AvGas), que era uma necessidade tanto para proporcionar um aumento na octanagem quanto prevenir a recessão das sedes de válvula. Experiências de sucesso no uso do etanol, principalmente pela aviação agrícola brasileira, já seriam suficientes para pôr em xeque a necessidade do chumbo, apesar do consumo de combustível mais elevado limitar o alcance dos aviões e exigir mais ciclos de pouso e decolagem a depender da quantidade de escalas necessárias a um vôo com etanol como combustível, e portanto a mudança para motores Wankel como os japoneses Mazda 13B de 2 rotores e 20B de 3 rotores poderia parecer tentadora.
O fato da Mazda ser na prática o único fabricante a efetivamente alcançar um sucesso comercial para os motores Wankel, em que pesem algumas experiências prévias da NSU encerradas quando a Volkswagen passou a deter o controle da NSU, já fomenta alguma dúvida quanto à viabilidade, tendo em vista que a própria Mazda após tentativas frustradas de fazer do Wankel um pau-pra-toda-obra passou a usar só em modelos esportivos, mais adequados às características um tanto peculiares apresentadas por esse tipo de motor. Os motores boxer ainda amplamente usados na aviação geral, e com predomínio da refrigeração a ar, permanecem suficientemente leves para o fim que se destinam, em que pese motores refrigerados a líquido poderem ser protegidos de forma mais efetiva quanto aos choques térmicos causados por razões de descida muito acentuadas na aproximação para um pouso, e por manterem o comando de válvulas no bloco com sincronização somente por engrenagens tal qual o Fusca, a confiabilidade inerente à ausência de uma correia dentada ou corrente sincronizadora proporciona um comodismo que inibe dar um passo à frente e eliminar por completo as válvulas com um motor Wankel, que tem como únicas peças móveis os rotores e o eixo excêntrico no qual estão engrenados fazendo as vezes do virabrequim de um motor a pistão. Portanto, como os únicos motores Wankel para os quais existe um aftermarket pronto e talvez já capaz de atender às necessidades do mercado de aviação (ao menos para a aviação experimental) são de refrigeração líquida, e pela tendência a operarem mais confortavelmente em faixas de rotação mais altas que acabaria exigindo invariavelmente o uso de caixas de redução entre o motor e uma hélice, fica bem mais difícil justificar que a transição dos motores boxer ocorra especificamente rumo aos Wankel...
Embora até os motores a pistão possam ser beneficiados pelo uso de hélices de passo variável, de modo que um controle da velocidade de vôo fique atrelado mais ao ângulo das pás da hélice que à rotação do motor, especialmente no caso de aviões com mais de um motor no qual a possibilidade de embandeirar a hélice de um motor inoperante para diminuir o arrasto até efetuar um pouso de emergência usando só um motor tem uma função extremamente importante para a própria segurança, pode-se dizer que é tão imprescindível a um motor Wankel quanto aos motores turboélice, que acabam sendo efetivamente algo mais palpável para quem tenta apontar um sucessor para o motor a pistão na aviação geral. Na prática, a maior vantagem dos motores turboélice é a possibilidade de simplificar a logística de combustíveis com os aviões a jato (tanto jato puro quanto turbofan) que usam querosene de aviação e, além de já resolver a questão do chumbotetraetila, também tem uma menor quantidade de peças móveis tal qual os Wankel, e costumam dispensar uma refrigeração líquida com toda aquela complexidade de radiadores e bombas d'água e mais tubulações e conexões para complicar a vida dos encarregados de manutenção. Mesmo as engrenagens de redução se fazendo presentes, tanto no cubo da hélice quanto na caixa de acessórios, os motores turboélice são favorecidos pela construção relativamente simples, sempre destacada por alguns professores meus cuja formação técnica ocorreu na época que a Varig transicionava dos motores radiais a pistão para turboélices e jatos, em que pese às vezes parecerem até intimidadores para quem ainda era mais familiarizado exclusivamente com motores a pistão.
Enquanto um motor Wankel precisa das duas velas por alojamento de rotor para proporcionar a correta propagação de chama (flame spread), com o sequenciamento de ignição rigorosamente controlado, um turboélice ou um jato tem a ignição mais simples, com apenas duas velas para o motor inteiro mais pela questão da redundância que é considerada um fator de segurança na aviação, pouco importando até se o formato da câmara de combustão é dividido em compartimentos interligados conhecidos em inglês por "can" (traduzido precariamente para "caneca" porque uma tradução para "canister" poderia fazer pouco sentido) ou num formato unificado conhecido por anelar que é exatamente o mais comum tanto para os turboélices quanto os jatos modernos, e sem um sequenciamento tão complicado. A grosso modo, seria mais justo comparar as velas de incandescência usadas num motor Pratt & Whitney Canada PT-6A com as glowplugs usadas como auxiliares de partida a frio em motores Diesel, enquanto para jatos as velas são mais parecidas com as de um motor a pistão e ficam centelhando até que a propagação de chama se sustente só pela entrada de ar e combustível atomizado na câmara de combustão. Curiosamente, para o segmento da aviação agrícola ser melhor atendido, o motor PT-6A chegou a ter ao menos uma versão certificada junto à FAA para uso de óleo diesel com até 500 partes por milhão de enxofre (S500) além do querosene de aviação, contrastando com tentativas mal-sucedidas da Rolls-Royce de fazer motores Wankel operarem no ciclo Diesel mais voltadas à propulsão de embarcações que à aviação, e portanto qualquer hipótese de um sucessor para os motores a pistão pesa mais a favor dos turboélices, mesmo que outros aspectos como a provisão de ar para sistemas pneumáticos diversos, além de climatização e pressurização de cabine mediante sangria direta dos compressores, nem sejam levados em conta.
Vale destacar que já existem conversões até de ícones como o Douglas DC-3/C-47 Skytrain/Dakota dos motores a pistão para turboélice, tendo em vista atualmente o menor custo e a maior disponibilidade da AvGas nos principais aeródromos mundo afora, apesar do consumo em litros por hora de vôo mais alto que acaba sendo um tanto surpreendente para quem seja mais familiarizado com combustíveis pesados de um modo geral em função dos motores Diesel notabilizados pelo consumo mais contido. O mesmo problema do consumo excessivo acaba sendo outro empecilho em desfavor de uma hipotética transição para motores Wankel, sem nem entrar no mérito do desgaste dos retentores apicais nas extremidades de cada rotor em função do atrito com a face interna das carcaças do motor, enquanto nos turboélices todo o atrito está mais restrito ao eixo principal que acopla as seções de turbina e de compressor, tal qual um turbocompressor que vem sendo cada vez mais comum em motores automotivos. E mesmo que o turbo proporcione aos motores a pistão uma compensação de altitude que os superchargers com acionamento mecânico pelo virabrequim eram incapazes de proporcionar na época do DC-3, e tendo sido oferecido também em algumas versões do motor 13B da Mazda, a própria natureza de um motor turboélice torna tal artifício redundante e até impraticável por gerar uma restritividade ao fluxo de escapamento, e assim fica mais uma vez provado que se fosse o caso de apontar uma sucessão para os motores a pistão junto ao mercado da aviação geral seria mais fácil descartar o Wankel como herdeiro-aparente.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Suzuki Jimny Sierra: um pau-pra-toda-obra improvável?

Lançada mundialmente em 2018, a atual geração do Suzuki Jimny tem qualidades que tornam o modelo adequado a variados perfis de uso, e até uma parte mais urbana do público aproveita o porte compacto e a manobrabilidade em espaços confinados que se revela útil tanto em trilhas mais travadas quanto para encontrar vagas de estacionamento em grandes centros urbanos. Ainda que um sistema de tração nas 4 rodas com caixa de transferência de dupla velocidade (a popular "reduzida") levando à classificação do modelo como utilitário e a uma alíquota de IPI sem distinção por faixa de cilindrada acima da aplicada aos carros "populares" quanto a tendência de parte do público brasileiro generalista ser negligente no tocante à manutenção preventiva pudessem contra-indicar tentativas de trazer uma versão com o motor turbo de 0.66L enquadrada na categoria kei que no Japão é de certa forma análoga aos "populares" do Brasil, a concepção bastante tradicional e atualmente vista com mais frequência em utilitários de porte maior com elementos como o chassi separado da carroceria e o motor em posição longitudinal chama a atenção por uma robustez e aptidão a trafegas por terrenos severos com uma desenvoltura que atenderia bem até mesmo a usuários que décadas atrás eram fanáticos pelo Fusca. E mesmo considerando como a evolução da eletrônica embarcada pudesse dificultar eventuais adaptações de motores Volkswagen mais antigos que são relativamente comuns em gerações anteriores de utilitários Suzuki, tendo em vista que a integração de outro motor a sistemas como por exemplo os freios ABS ficaria comprometida, talvez ter um motor de concepção conservadora com injeção sequencial e aspiração natural seja mais conveniente que a obsessão por motores turbo (principalmente 1.0 para ficarem enquadrados no mesmo IPI menor que os carros "populares" são enquadrados) nos SUVs generalistas de fabricação nacional com tração dianteira e estrutura monobloco cuja capacidade de incursão off-road é claramente inferior.
O porte diminuto naturalmente restringe o espaço interno, tanto pela acomodação para apenas 4 pessoas quanto por uma falta de espaço para bagagens, tendo em vista que apesar dos parachoques mais bojudos e dos paralamas mais largos a carroceria do Suzuki Jimny Sierra é basicamente a mesma da versão kei à venda no Japão, embora uma carroceria mais longa com 4 portas e acomodação para 5 pessoas além de um porta-malas mais comparável ao de um hatch generalista tenha sido desenvolvida especificamente para atender à Índia e que a bem da verdade ainda poderia ser bem recebida em mercados de exportação já servidos pela Maruti Suzuki indiana em outros segmentos. Embora um veículo tão compacto possa ser útil para a maioria dos usuários generalistas, é inegável tratar-se de um modelo mais especializado e que acabaria atraindo mais a uma parcela muito específica do público rural caso fosse apresentado com um viés análogo ao dos carros "populares", em contraste com a atual abordagem em torno de veículos 4X4 alçando-os à condição de um mero artigo de luxo que agrada a usuários com um perfil mais urbano cuja aplicação para a capacidade de incursão off-road fica mais restrita a um uso recreativo e ocasional. Enfim, mesmo que o mercado brasileiro tenha uma dinâmica tão difícil de explicar que faça um modelo como o Suzuki Jimny Sierra ser passível de comparações tanto a caminhonetes tradicionais quanto ao Fusca de estimação mantido com zelo por um colono do interior considerando condições operacionais realmente severas, além de parecer interessante para uma parte do público generalista que poderia ser bem servida em ambiente urbano por um hatch compacto tradicional, pode ser um pau-pra-toda-obra à primeira vista bastante improvável.

domingo, 8 de outubro de 2023

Opel Kadett 1937

Produzido na Alemanha somente entre 1936 e 1940 quando a II Guerra Mundial forçou a interrupção da produção de automóveis civis, o Opel Kadett I já é raro até na Europa, e encontrar um exemplar ao que tudo indica ainda em condições de uso normal no Brasil chama ainda mais a atenção. Exemplar visto na Expoclassic 2023 em Novo Hamburgo, do ano de 1937, chama a atenção por ser um Opel, que já evoca lembranças de quando a General Motors do Brasil alinhava a operação local da Chevrolet até mais com a Opel que com a Chevrolet americana. Ser ao que tudo indica o único Opel Kadett I original ainda em efetiva operação no Brasil é outro ponto curioso a se destacar.
Embora tivesse uma suspensão dianteira independente, freios hidráulicos e a estrutura monobloco, que eram grandes modernidades à época especialmente para um compacto de proposta mais austera, o Opel Kadett I tinha motor de 1.1L e 4 cilindros ainda com válvulas laterais, câmbio manual de 3 marchas e tração traseira por eixo rígido. Certamente poderia ter sido um sucesso ainda maior no pós-guerra, caso o ferramental de produção nunca tivesse sido requisitado pela União Soviética a título de reparação de guerra, solicitação atendida apesar da fábrica da Opel em Rüsselsheim ter ficado na zona de ocupação americana logo após a II Guerra Mundial, e assim dado origem ao Moskvitch 400-420 produzido entre 1947 e 1954. O simples fato de ter permanecido original por mais de 80 anos, em que pese a escassez de peças de reposição mais específicas para carros europeus antigos no Brasil a partir da década de '70 quando já seria eventualmente visto como um "carro velho" ao invés de ter o merecido reconhecimento como um clássico. 

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Por que talvez pudesse ser interessante que voltasse a ser ao menos permitido registrar veículos RHD no Brasil?

Ao ver em 2008 durante uma exposição de carros antigos no Iguatemi de Porto Alegre, que se eu bem me lembro tinha algo a ver com as promoções de dia dos pais, um raro Marmon Sedan Imperial de 1928, me passou um tanto despercebido à época a posição do volante no lado direito. Ao rever as fotos que eu havia tirado naquela época, foi inevitável a surpresa por um detalhe tão importante e que ficou praticamente ignorado por mim ao longo de 15 anos. Mesmo que até 1928 ainda houvesse uma variação quanto ao sentido de circulação de veículos em diferentes cidades do Brasil, e a mão inglesa permanecesse em uso em Porto Alegre por exemplo, a situação mudou com a uniformização da circulação na mão francesa a nível nacional naquele ano. Mas proibições explícitas ao registro e licenciamento de veículos com o cockpit no lado direito, também conhecidos pela sigla RHD, são muito mais recentes e começaram a recrudescer a partir de 2015, e só veículos com mais de 30 anos já documentados como de coleção escaparam das restrições, e vale destacar que o principal argumento tem a ver com a assimetria dos faróis ao invés de qualquer outra consideração.

Ao menos até a década de '70, ainda era mais comum em veículos de fabricação brasileira o uso de faróis sealed beam redondos, como permaneceu obrigatório nos Estados Unidos de 1940 até 1983, e tais faróis costumavam ter facho simétrico para facilitar a reposição, apesar de terem sido comercializados faróis sealed beam assimétricos em outras regiões como a Europa e partes da Ásia, mas talvez a leniência quanto ao uso de faróis simétricos em veículos de fabricação mexicana fomente algum questionamento. Naturalmente faróis assimétricos com facho mais intenso do lado esquerdo causam incômodos e prejudicam a segurança, pois fica mais fácil ofuscar outros motoristas trafegando no sentido contrário, e o mesmo problema acaba sendo atenuado em regiões onde o cruzamento de fronteiras entre países com sentidos de tráfego opostos é mais intenso mediante o bloqueio de parte da lente do farol mais forte com um adesivo opaco, e geralmente o efeito é parecido com o que seria alcançado com faróis simétricos. A bem da verdade, como a imensa maioria dos veículos novos vendidos no Brasil são de fabricantes multinacionais, mesmo modelos projetados em países de mão inglesa como o Japão e a Índia seriam facilmente adaptáveis para solucionar o problema, principalmente os japoneses considerando a disponibilidade tanto de conjuntos ópticos assimétricos com o facho mais intenso do lado direito que é o padrão usado no Brasil quanto simétricos tal qual se usa nos Estados Unidos.

Outro ponto que pode causar controvérsias no âmbito da segurança seria a visibilidade em ultrapassagens em trechos rodoviários de pista simples, tendo em vista que com o cockpit mais próximos da borda da pista é mais difícil visualizar o tráfego no sentido contrário para identificar o momento certo de iniciar a manobra, embora até para esse inconveniente já existam soluções eficazes com diferentes graus de complexidade que vão desde conjuntos de espelhos auxiliares usados em alguns veículos de entregas nos Estados Unidos até os sistemas de "câmera continental" muito usados na Europa tanto por motoristas de veículos RHD geralmente registrados na Inglaterra ao trafegarem pelo continente quanto ao trafegar na Inglaterra com veículos LHD (left-hand drive, cockpit à esquerda). Um veículo registrado em outro país até pode trafegar no Brasil mesmo que seja RHD com base nas regras da Convenção de Viena mesmo sem oferecer algum recurso para atenuar alguns prejuízos à visibilidade durante ultrapassagens, assim como veículos registrados no Brasil também são amparados por essa norma, embora quem fosse fazer o uso principal de um veículo com o cockpit no lado oposto ao mais recomendado para o público generalista no país de registro do veículo acabasse ficando tentado a usar um auxílio à visibilidade em ultrapassagens.

E mesmo que à primeira vista conduzir um veículo com o cockpit no lado direito possa parecer inconveniente no Brasil, ainda cabe destacar que algumas condições específicas ficariam especialmente convidativas ao uso de uma configuração tão "exótica" aos olhos do público generalista, tanto para entregas fracionadas urbanas de porta a porta quanto em alguns trechos de estrada em regiões de montanha. Por mais intrigante que pareça, o caso da Suécia que usava a mão inglesa até o dia 3 de setembro de 1967 (Dagen-H) embora a frota circulante fosse predominantemente com o cockpit no lado esquerdo pode até ser apontado como um precedente interessante, tendo em vista que foi feita a alteração para o sentido de circulação atual basicamente no intuito de harmonizar a prática com países vizinhos, ainda que a complexidade cada vez maior que já se considerava muito iminente para os faróis das gerações subsequentes de automóveis também fosse analisada e levada em consideração. Embora tenha continuado a prevalência da configuração LHD na frota sueca após o Dagen-H, e tanto a substituição de faróis assimétricos em todos os veículos que já os usavam quanto reposicionar portas de ônibus tivessem um custo algo elevado, é compreensível que parecesse preocupante o risco de um impacto ainda maior nos custos de veículos para atender à Suécia ou fossem feitos lá e tivessem um custo também difícil de assimilar em mercados de exportação.

Seria possível apontar a eventual vantagem de uma liberação de veículos RHD no Brasil até para promover o intercâmbio comercial junto a países onde se usa a mão inglesa, em que pese caminhões e chassis para ônibus de fabricação brasileira ainda serem vendidos na África do Sul por exemplo, lembrando do fornecimento de kits CKD a partir do Brasil para as filiais de fabricantes tradicionais do setor de veículos pesados como a Scania ou a Mercedes-Benz. A antiga posição destacada do Brasil no fornecimento de veículos para países "emergentes" antes que China e Índia ganhassem um market-share maior também é digna de nota, tendo em vista que se fosse possível oferecer aos operadores brasileiros a liberdade de escolher a configuração mais favorável a condições operacionais distintas a economia de escala poderia favorecer mais a competitividade de alguns veículos feitos no Brasil como foi o caso de caminhonetes Ford que iam do Brasil para a Austrália até com opções indispensáveis oficialmente no Brasil ou Fiat e Chevrolet que chegaram a ter algum destaque na África do Sul. E até no tocante a veículos importados, ficaria muito mais fácil tanto para dekasegis retornando ao Brasil trazerem veículos que compraram durante a estadia no Japão quanto para ser facilitada a importação de veículos especiais como esportivos japoneses que passaram a ter uma maior fanbase graças aos primeiros filmes da franquia Velozes e Furiosos, além de veículos utilitários diversos que podem ter uma disponibilidade para pronta entrega mais fácil trazendo de países como o próprio Japão ou também a Tailândia e a África do Sul.

Por mais improvável que pudesse parecer num primeiro momento, seria pertinente a liberação do registro e do licenciamento de veículos com o cockpit no lado direito para trafegarem normalmente no Brasil, tanto em função de condições operacionais distintas quanto para retomar a competitividade dos carros brasileiros na pauta de exportação. É natural que tal medida pudesse encontrar uma desconfiança, até lembrando do caso de países vizinhos como o Paraguai onde até se pode importar carros usados com menos de 30 anos mas no caso dos RHD provenientes principalmente do Japão a conversão para LHD é obrigatória, ou lembrarmos também da Austrália onde veículos LHD com menos de 30 anos precisam ser convertidos para RHD, embora no Brasil o maior empecilho à segurança apontado para tentar justificar a proibição aos RHD fosse o facho dos faróis que acaba sendo mais simples de resolver ou no mínimo atenuar. Enfim, apesar que uma parte do público brasileiro generalista fique receosa, e outra simplesmente considere tal medida pouco prática à medida que modelos voltados aos principais mercados mundiais tenham tanto versões LHD quanto RHD, pode ser mesmo benéfico se veículos RHD novos pudessem ser regularizados no Brasil.