segunda-feira, 15 de julho de 2019

Chevrolet Cruze de 1ª geração: um modelo marcante

Passados 10 anos do início da comercialização da geração anterior do Chevrolet Cruze em mercados internacionais, tendo sido lançado inicialmente na Coréia do Sul em finais de 2008 ainda como Daewoo Lacetti e chegando no Brasil apenas em 2011, o modelo simbolizava um renascimento da Chevrolet como um player importante no cenário mundial da indústria automobilística. De fato, é um modelo marcante, tendo ganhado uma sobrevida em alguns mercados periféricos entre 2016 e 2018 em meio à retirada da GM de alguns mercados como a Índia e a África do Sul e o downsizing da operação tailandesa, enquanto outros mercados já recebiam uma nova geração. Mesmo que se trate de um produto excelente, não há nem como ignorar que a competição com fabricantes japoneses e mais recentemente chineses pesou contra o esforço para reposicionar globalmente a marca. Naturalmente, o Cruze não foi o único modelo mundial a figurar na tentativa de reerguer a GM valendo-se da Chevrolet como marca generalista, mas sem dúvidas foi o que chegou mais próximo de alcançar um público mais heterogêneo na maior parte dos mercados.
As versões de carroceria que chegaram à maioria dos mercados, inclusive ao Brasil, foram o hatch e o sedan, enquanto uma station-wagon teve disponibilidade muito mais restrita a mercados europeus e na Ásia e Oceania. As ofertas de motores também tiveram diferentes escalonamentos de acordo com as preferências e/ou regulamentações de cada região, sendo que no Brasil foi oferecido somente um Ecotec de 1.8L na configuração "flex" movido a gasolina e etanol, em contraponto à configuração somente a gasolina que foi mais usada no exterior. Além dessa versão de 1.8L que só usava câmbios de 6 marchas tanto nas versões manuais quanto automáticos, o motor Ecotec chegou a ser oferecido com 1.6L e câmbio manual de 5 marchas ou o automático de 6, além de uma versão Turbo desse mesmo motor exclusiva para a China e usando o câmbio manual de 6 marchas. A outra opção a gasolina foi o mesmo 1.4 Turbo que seria disponibilizado na geração atual, inclusive como "flex" no Brasil onde também se tornaria padrão somente o câmbio automático, mas nos países onde esse motor foi comercializado na geração anterior também com câmbios de 6 marchas tanto no manual quanto no automático. Em mercados onde motores turbodiesel podiam ser usados, a exemplo da Índia onde o Cruze contou somente com esse tipo de motor, as opções variaram desde o tradicional motor de 1.7L originário de um projeto da Isuzu sempre com o câmbio manual de 6 marchas que foi mais usado na Europa a partir de 2012, além de opções de 2.0L abrangendo desde um motor projetado pela VM Motori e produzido na Coréia do Sul pela própria Daewoo/GM Korea até outro de projeto próprio da GM que viria a substituí-lo, além de um de origem Fiat que seria usado somente nos Estados Unidos e Canadá. Os câmbios oferecidos nos motores 2.0TD também variaram entre o automático de 6 marchas, que por sinal foi a única opção nos mercados americano e canadense, e manuais de 5 marchas que permaneceram paralelamente aos de 6 marchas até 2011 em diferentes países.
Como um projeto de "carro mundial" que realmente conseguiu se adaptar às exigências de diferentes mercados, o Chevrolet Cruze de 1ª geração pode não ter superado em vendas os principais rivais de origem japonesa mas provou que a General Motors pode se manter competitiva a nível mundial e oferecer produtos de qualidade fora daquela "zona de conforto" de focar nas "banheiras" com um mercado muito restrito aos Estados Unidos. A confiabilidade que permitiu inclusive bons resultados no uso do modelo como táxi, mesmo que não tenha se tornado tão comum nessa função, não deixa de atestar a robustez e relativa facilidade de manutenção que se fizeram tão necessárias para recuperar a imagem de uma GM desgastada pelo processo de falência e reorganização corporativa. Enfim, por motivos que vão desde fatores mais técnicos até as próprias condições da época em que foi lançado no rescaldo de uma grave recessão, é um modelo ainda muito marcante.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Indústria automotiva instalada no Brasil: uma mistura de Lada com Gurgel

Como é possível que modelos marcantes no início da década de '90, e com uma grande diferença em aspectos como tamanho, tipo de carroceria e nacionalidade possam ter se tornado de certa forma precedentes do que viria a predominar na indústria automotiva instalada no Brasil? De um lado a evidente defasagem dos Lada Laika que começaram a marcar presença durante a reabertura das importações em '90, e do outro o Gurgel BR-800 que mesmo tendo sido lançado em '88 com a árdua missão de servir como uma espécie de substituto 100% nacional para o Fusca teve mais relevância como precursor do que se definiria como "carro popular" no governo Collor. A aparentemente improvável mistura de elementos que nortearam a estratégia de recorrer a uma plataforma já obsoleta na Europa Ocidental como base do "carro popular" soviético, bem como alguns projetos modernos que levam em conta um ou mais aspectos cotidianos do público-alvo de automóveis subcompactos em países do terceiro mundo como foi o caso do Gurgel BR-800 à época, é facilmente perceptível ao lançar um olhar crítico sobre a oferta atual de veículos 0km de fabricantes estrangeiros em operação no mercado brasileiro.
No caso específico do Gurgel BR-800, não há nem como ignorar algumas semelhanças conceituais com o Volkswagen Up, não só no enquadramento como subcompactos e o formato puxado para um monovolume, mas também na proposta ambiciosa de ser um "novo Fusca". Evidentemente que pode ser observada uma grande variedade de diferenças substanciais de ordem técnica entre os projetos do BR-800 e do Up, não só em função de mudanças nas normas de segurança e emissões, mas entrando também em pauta as preferências de consumidores com um perfil mais urbano e o marketing em torno de subcompactos se distanciando do aspecto meramente utilitário e a ênfase na economia aplicados ao BR-800 para que a narrativa da "mobilidade urbana" faça da atual oferta nessa categoria algo atrativo ao público generalista que deseja uma imagem mais sofisticada mesmo num modelo que se destinaria originalmente a ser tão utilitário e funcional quanto projetos específicos para o terceiro mundo. A bem da verdade, o Up estava cotado até no Brasil para se tornar um modelo de entrada que justificasse até a possibilidade de atrair mais vendas junto ao público corporativo, mas uma sucessão de erros da Volkswagen no tocante a preços e estratégias de publicidade fez com que não tenha se tornado tão fácil encontrar o modelo na mão de consumidores com um perfil mais modesto ou como "carro da empresa".

Outro exemplo dessa situação em que de certa forma a filosofia utilitária da Gurgel não deixa de estar de certa forma presente num projeto de origem estrangeira é o Renault Kwid. Desenvolvido mais em função do mercado indiano, onde a precariedade da malha viária também é desafiadora, incorporou no Brasil aquele mote publicitário de "SUV dos compactos" que não apenas serve para torná-lo mais simpático aos olhos de uma parcela do público que associa os SUVs a um simbolismo de status que de outra maneira pareceria mais distante para uma parte considerável dos consumidores. Mesmo não chegando a extremos em termos de aptidão off-road, até por manter um layout mecânico mais comum a outros hatches contemporâneos com o motor transversal e tração dianteira, não deixa de remeter ainda que vagamente à idéia que norteou a produção da Gurgel antes dos modelos de proposta mais popular quando ainda se concentrava na linha de utilitários derivados da mecânica Volkswagen. De certa forma, guardadas as devidas proporções, até porque no caso do Gurgel X-12 o layout mecânico do Fusca já é naturalmente mais apto a incursões por terrenos severos, o uso de um conjunto motriz de acordo com o mais usual em carros "populares" no Brasil em diferentes épocas se manteve, ainda que o desempenho em algumas condições como utilitário possa deixar a desejar.

No tocante a SUVs do tipo "crossover" propriamente ditos, o compartilhamento da plataforma com modelos generalistas que tem sido nos mercados de origem cada vez mais direcionados para um uso urbano e rodoviário em boas condições de pavimento, embora os controles eletrônicos de tração e estabilidade proporcionem algum auxílio em condições de baixa aderência como neve na pista mas não façam milagre em alguns trechos não-pavimentados, especialmente quando os pneus não sejam os mais adequados para o uso em todo tipo de terreno, pode até não remeter totalmente à mesma idéia de aptidão off-road da época da Gurgel, tendo em vista a ascenção desse tipo de carroceria mais como um símbolo de status junto ao público urbano em detrimento de outros modelos. Tomando o exemplo do Volkswagen T-Cross, já começou a afetar até mesmo as vendas de um modelo mais tradicional da marca numa classe de tamanho acima. Por mais surpreendente que poderia soar até uns 10 anos atrás, hoje um SUV compacto está fazendo fogo amigo para o Golf, não só pela alteração na preferência do público generalista entre diferentes tipos de carroceria mas também por iniciativa dos fabricantes que acabam vendo alguma vantagem em simplificar a escala de produção empurrando algum SUV como o substituto para praticamente todos os outros tipos de carro.

Retomando a comparação com a Lada e outro modelo da marca que chegou ao Brasil, nesse caso o Niva, vale destacar que apesar de ser um utilitário mais bruto do que a atual geração de crossovers, muito da estrutura básica foi compartilhada com o mesmo projeto que deu origem ao Fiat 147. Por mais louco que possa parecer, e o uso de motor longitudinal com um sistema de tração 4X4 integral no jipão russo destoe da primazia do motor transversal na produção brasileira com o Fiat 147, ainda dá a entender que muito das soluções hoje tratadas com descaso mas que serviram bem tanto à Lada quanto à Gurgel tem se mantido mais fortes do que se poderia inicialmente esperar. Cabe lembrar que os motores usados pela Lada nos modelos importados oficialmente tem a mesma origem do Fiasa que foi produzido no Brasil desde a introdução do 147 em '76 até ao menos 2004 quando a consolidação do mercado generalista em torno dos motores "flex" a álcool e gasolina priorizou o motor Fire. Mas no caso dos motores antigos, tanto o russo quanto o brasileiro são derivados da série 124 projetada por Aurelio Lampredi inicialmente ainda com comando de válvulas no bloco sincronizado por corrente, embora no Brasil tenham ficado mais conhecidas derivações já com comando no cabeçote e sincronização por correia dentada que de vez em quando causava surpresas desagradáveis se passasse muito tempo sem manutenção...

Outro aspecto a se destacar observando a breve passagem da Lada pelo mercado brasileiro, mas que se repete em produtos de outros fabricantes é a insistência nos sedans como o tipo de carroceria mais fácil de atingir ao público generalista. Já não é um estilo muito procurado na Europa Ocidental, ainda que permaneça popular nos países da antiga Cortina de Ferro e outros mercados emergentes como o Brasil. Ainda que nem sempre a estratégia seja requentar plataformas obsoletas como ocorreu com o Lada Laika que era basicamente uma versão feita sob licença do Fiat 124, e o compartilhamento de uma plataforma moderna entre a mula-de-cigano para desovar no terceiro mundo e o hatch moderno em sintonia com o mercado europeu seja uma realidade bem exemplificada pelo Volkswagen Virtus em relação ao Polo, é inegável que o sedan ainda encontre receptividade junto a uma grande parte dos consumidores que necessitem de um veículo menos "especializado" para trajetos curtos e urbanos, de modo que às vezes até a distância entre-eixos pode ser mais longa quando comparado ao hatch que use a mesma plataforma. Até pela questão do custo, muitas vezes um sedan compacto que não vá ser disponibilizado na Europa acaba preenchendo em mercados como o Brasil um espaço que antes era cativo dos sedans médios junto a uma parcela bastante conservadora do público tanto generalista quanto em aplicações como táxi e mais recentemente motoristas de aplicativos como Uber e Cabify. Vale destacar também a questão dos motores, sendo que o Virtus e versões brasileiras do Polo ainda contam com um motor aspirado de 1.6L indisponível para os congêneres europeus, oferecida tanto em versão "flex" no Brasil quanto só a gasolina para exportação regional a países como o Uruguai onde a maior simplicidade é apreciada diante da sofisticação do TSI de 1.0L com turbo e injeção direta que no Brasil se justifica em grande parte pela tributação mais favorável a motores até essa faixa de cilindrada. Também vale levar em consideração as diferenças na adaptabilidade a alguns combustíveis alternativos, com o TSI respondendo melhor ao álcool até na partida a frio em função da injeção direta, ao passo que o MSI permanece mais fácil de converter para gás natural com resultados mais satisfatórios pela ausência da injeção direta.

Naturalmente era uma missão hercúlea fazer com que o brasileiro deixasse de tomar como referência absoluta para qualquer pauta sobre automóveis o Fusca, embora de certa forma o breve retorno às linhas de produção entre '93 e '96 possa ser considerado uma reação para "marcar território" diante da "ousadia" de Amaral Gurgel em propor um novo conceito de carro popular que visava suprir em parte algumas características como a aptidão para condições de terreno mais irregulares, sendo também beneficiado pelo aumento no imposto de importação em '95 que tornava menos lucrativa a operação da Lada. A longo prazo, muitas mudanças ocorreram no Brasil, e como seria de se esperar o setor automobilístico não escapou dos efeitos, com reflexos que se observam até a atualidade. Sem sombra de dúvida, um dos aspectos mais irônicos que se pode observar é que tanto a Gurgel quanto a Lada de certa forma deixaram alguma influência nas linhas atuais de boa parte dos fabricantes ainda operantes no mercado brasileiro, mesmo que se faça necessária uma análise mais criteriosa para visualizá-la...