segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Inspeção veicular: um mal necessário

Não é novidade que o custo de manutenção de um automóvel atinge proporções abrsurdas no Brasil, o que de certa forma induz a uma busca por improvisos para manter uma parte considerável da frota em operação. Porém, há de se considerar o quão perigosas certas alterações possam vir a se tornar não apenas para os usuários de um veículo como também para os demais transeuntes que venham a dividir espaço nas vias públicas. Uma retenção ineficaz da carga numa Kombi, por exemplo, poderia muito bem vir a causar uma tragédia, já demonstrando o quanto uma avaliação do estado geral de conservação da frota circulante não deixa de ter importância para que se promova a segurança viária.

Naturalmente, a iminência de mais um custo a ser arcado por proprietários/operadores dos veículos já desperta um descontentamento, até bastante justificável diante da incompetência estatal. Como se não bastassem IPVA (não-aplicável no caso de alguns modelos mais antigos), DPVAT e o licenciamento anual, já vai sendo projetada mais uma facada no bolso do cidadão que às vezes se vê sem receber um esperado retorno em serviços públicos e infraestrutura viária de qualidade em contrapartida pelo tanto de impostos e taxas arrecadados por governos que se revelam verdadeiros parasitas. Pode-se alegar, ainda, que a excessiva burocratização e o viés meramente arrecadatório frequentemente associados ao serviço público brasileiro nas mais distintas esferas administrativas também não deixa de ter seu peso nas dificuldades observadas em todas as propostas que já foram apresentadas visando promover uma renovação de frota com o consequente sucateamento de veículos mais antigos cujo custo para efetuar os reparos necessários a uma operação segura e eficiente possa tornar-se economicamente inviável.
Há de se levar em consideração, evidentemente, que muitos veículos que não se encontram no estado de manutenção mais adequado possam eventualmente ser destinados ao uso profissional, e o impacto imediato de uma política de inspeção veicular acabe causando um certo temor quanto às condições que proprietários/operadores encontrariam para se adaptar. É impossível ignorar, por exemplo, que o usuário de uma pick-up compacta como a Ford Pampa possa não ter o substituto mais adequado para a aplicação no transporte de carga num hatch "popular" como o atual líder de vendas Chevrolet Onix. Assim, já se encontra um possível foco de resistência à implementação da inspeção veicular, que se converteria numa medida extremamente impopular que poderia ser tratada até como um "suicídio político".

Mesmo que a proposta original do carro "popular" 0km iniciada com o Fiat Uno Mille no começo da década de '90 tenha se tornado simplesmente uma ilusão para uma parcela expressiva da população, que vê em modelos hoje antigos como o próprio Mille uma alternativa mais imediatamente acessível, não se pode ignorar que a propriedade de um veículo ainda figura entre as principais metas do povão. A bem da verdade, qualquer administrador público que transforme o sonho do "pois é" próprio num pesadelo corre o risco de não se eleger mais nem como síndico de prédio. Nesse sentido, a inspeção veicular acaba sendo considerada problemática por uma parte considerável do público que recorre aos "paus véios" sob a alegação de um custo de manutenção mais baixo tanto pela simplicidade quanto por eventualmente já estar isento de IPVA.

Também tem ocorrido uma inquietação entre proprietários e entusiastas de veículos antigos, devido a especulações quanto à forma que certos itens como índices de emissões e a presença de equipamentos obrigatórios vá ser tratada. Naturalmente, seria impossível querer que um Aero Willys cumpra as normas em vigor para um modelo atualmente em produção como o Ford Fusion, tanto pela diferença entre a tecnologia disponível em épocas distintas quanto pela inviabilidade econômica para se alterar um carro clássico de modo que passe a cumprir certas exigências técnicas atuais. Portanto, soa como altamente improvável que a evidente defasagem técnica venha a servir como pretexto para condenar um veículo em bom estado de conservação com base tão somente na idade avançada, desde que se enquadre nos requisitos exigidos à época da fabricação.

Por mais que não seja impossível fazer alguns upgrades em veículos antigos, com atenção especial para os freios à medida que o disco vai tomando o espaço antes cativo do vetusto tambor, é natural que nem todas as modificações venham a ser compatíveis com todos os veículos antigos em geral. Caberia portanto aos gestores de um eventual programa de inspeção veicular que exercitem o bom senso. Por mais que alguma semelhança conceitual possa ser observada até mesmo entre um modesto Fusca e um Porsche 911 da geração mais recente, mais notadamente pelo motor boxer traseiro, não há como negar tanto o contexto de cada segmento de mercado em épocas distintas quanto os recursos tecnológicos que foram sendo incorporados pela indústria automobilística para lidar com diferentes condições operacionais e regulamentações. A refrigeração a ar que ajudou a fazer a fama do Fusca, e chegou a ser usada nas primeiras séries do Porsche 911, por exemplo, hoje se mostra incompatível com certas normas ambientais como as que regulam as emissões de hidrocarbonetos crus e com a crescente pressão por melhorias na eficiência energética, às quais nem um esportivo consagrado escapa...

É importante destacar que a ênfase no estado geral de conservação do veículo durante a inspeção dá margem a interpretações um tanto subjetivas, o que pode ser desfavorável a adeptos de modificações ao estilo "hoodride" ou "rat" que se popularizaram principalmente entre entusiastas dos Volkswagen de motor refrigerado a ar como a Brasília. Mesmo que alguns artifícios usados para dar ao veículo uma aparência mais desgastada possam não acarretar num efetivo comprometimento da integridade estrutural, não seria exatamente uma surpresa que venham a constituir critérios de reprovação para fins de inspeção. Polêmicas à parte, e considerando o valor histórico e cultural que os carros antigos em geral tendem a apresentar, é previsível que um cerco aos "rats" não seja totalmente malvisto entre colecionadores e entusiastas de veículos antigos, e talvez possa ainda servir como pretexto tanto para incentivar restaurações mais próximas aos padrões de fábrica quanto para promover a valorização de exemplares menos descaracterizados.

Por mais absurdo que possa parecer, esse Ford Corcel transformado em lanchonete trafega por vias públicas
Outro ponto que acaba dando margem a discussões mais acaloradas é quanto a modificações que os veículos possam ser submetidos, ou não. Infelizmente, um programa de inspeção veicular sério ainda pareceria ser o jeito mais eficaz de coibir alguns abusos. Se por um lado não se pode negar que certas alterações de características sejam visivelmente inadequadas aos veículos nas quais são aplicadas, por outro não deixa de ser necessário prover uma definição suficientemente clara para que se diferencie uma gambiarra e uma adaptação feita respeitando limites que a estrutura original de um automóvel ou utilitário esteja corretamente dimensionada para suportar. Alterações de suspensão, mais notadamente o rebaixamento que em algumas situações se torna prejudicial à fluidez do tráfego, também estariam entre as práticas a serem fiscalizadas com mais rigor por um programa de inspeção veicular sério, de modo a tirar de circulação alguns veículos que possam de fato se tornar um transtorno para os demais usuários da via que não são obrigados a perder tempo enquanto adeptos dessa modificação de gosto duvidoso precisam fazer malabarismos às vezes perigosos para conseguir passar por obstáculos na via que qualquer carro em condições decentes consegue transpor sem tanta dificuldade.

A inspeção veicular também tem causado dúvidas entre os motociclistas, principalmente os adeptos das motos do tipo custom, como as Suzuki Intruder 250 e 125, que de vez em quando passam por modificações até bastante extensas não só visualmente como também nos chassis. De fato, uma eliminação da suspensão traseira ou de equipamentos obrigatórios como o freio dianteiro, o painel de instrumentos ou os paralamas devem ser no mínimo desencorajadas em virtude de um eventual risco que possam trazer não apenas para a integridade física do piloto como também de um terceiro que venha a ser envolvido num acidente causado pela ausência ou falha de tais componentes, bem como danos materiais que venham a ser causados tanto ao patrimônio público quanto particular. Por outro lado, tem havido um rigor excessivo contra alterações que não viriam a elevar substancialmente o risco de um acidente, como a troca dos guidons, bancos, sistemas de iluminação, retrovisores e outros equipamentos por algum similar que apresente especificações diferentes das originais de fábrica.

Cortes no quadro de motocicletas, uma alteração mais comum principalmente em customizações aos estilos "bobber" e "chopper", já são passíveis de causar eventuais dificuldades para a regularização ou em fiscalizações de trânsito, mesmo que possam não causar maiores comprometimentos à integridade estrutural. De fato, convém ter muito cuidado com alterações no chassi em qualquer veículo, apesar de nesse aspecto as motos estão longe de ser a única espécie submetida a tal procedimento. É até fácil encontrar nas ruas e estradas por todo o país alguns veículos com alterações mais drásticas no chassi, desde caminhões com alterações no comprimento e na distância entre-eixos em alguns casos junto à adaptação de eixos suplementares até as limousines. A princípio, como já existem regulamentações para a homologação de veículos modificados prevendo que a inspeção dos mesmos fique a cargo do Inmetro ou de oficinas credenciadas, ao menos em teoria não deveria haver motivo para maiores preocupações nesse sentido.


A substituição do escapamento, normalmente por um mais ruidoso, também se mostra propensa a causar polêmicas, tanto em função da idéia equivocada de que uma poluição sonora possa servir de alerta para os demais usuários das vias públicas acerca da presença da motocicleta (a famosa tática do "loud pipes save lives") quanto pela eventual influência de um escapamento menos restritivo sobre o desempenho. Motocicletas tão diversas quanto uma Harley-Davidson ou uma superesportiva de 4 cilindros como as Kawasaki Ninja ZX-10R podem ser frequentemente vistas com escapamentos alterados sem que os condutores sejam atacados com tanta frequência por agentes de fiscalização de trânsito, o que acaba levando a uma percepção de injustiça por parte de proprietários de motos mais modestas (normalmente de pequena cilindrada) que costumam ser abordados com mais frequência. Há de se considerar também a dificuldade para homologação de escapamentos não-originais mesmo que se enquadrem nos limites de emissão de ruídos, o que pode se tornar uma dificuldade a mais para fazer a manutenção de motocicletas mais antigas e cuja produção já tenha sido descontinuada como a Suzuki DR 800 e as clássicas Yamaha DT 180 e DT 200, tendo em vista que algumas adaptações com escapamentos de saída baixa apesar da aparente facilidade podem não ser a opção mais adequada à proposta de uso misto on/off-road desses modelos.

Ainda que seja de fato uma daquelas situações em que os bons acabam pagando pelo peixe comido pelo gato, não há como negar que a inspeção veicular possa tornar-se uma importante aliada por um trânsito mais seguro e eventualmente possa contribuir até para redução de emissões de poluentes por veículos em mau estado de conservação que deixariam de circular, bem como pela destinação correta de sucatas. Mesmo que possa às vezes soar como uma política meramente "higienista", acaba sendo um choque de realidade para muitos que não se dão conta do grau de responsabilidade exigido pela manutenção de um carro ou moto. Trata-se, enfim, de um mal necessário.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Como explicar a pouca aceitação dos carros conversíveis num país como o Brasil?


Talvez uma das observações mais frequentes por parte de estrangeiros iludidos com a propaganda do "país tropical", principalmente quando ainda não entraram em contato com a realidade brasileira, é sem dúvidas o espanto diante da presença bastante limitada de carros conversíveis no nosso país. Ainda que essa não seja a única esquisitice do mercado automotivo local, num primeiro momento até pode parecer difícil de explicar. Porém, depois de algum tempo, chega-se à conclusão que a a irrisória disponibilidade de conversíveis é o menor dos problemas...
Se em outros tempos um carro mais comum de se ver nas ruas como o Ford Escort dispunha da opção pela versão conversível, que de certa forma combinava com as pretensões esportivas do XR3, não só o alto custo fez com que a demanda fosse um tanto limitada como também considerações no tocante à segurança se faziam presentes. Além da resistência torcional do monobloco tornar-se inferior ao que a carroceria de capota rígida oferece, mesmo considerando a adição de reforços estruturais em pontos estratégicos, não se podia ignorar desde a menor proteção ao condutor e passageiros na ocorrência de uma capotagem até um eventual incêndio que pudesse ser iniciado com o simples arremesso de uma mísera ponta de cigarro ainda acesa. Portanto, já não deveria ser de se causar tanto estranhamento a rejeição por parte de consumidores com um perfil mais generalista e urbano que tem procurado cada vez mais refúgios em meio à selvageria das ruas.

Outro ponto que acabou tendo seu peso contra os conversíveis, mais especificamente na década de '90, foi uma mudança na preferência do público brasileiro, que passou a deixar de lado os carros com apenas duas portas para aderir à praticidade das 4 portas. Se por um lado ainda soava atraente a idéia de poder manter a capota fechada em nome do conforto e até alguma privacidade em meio ao tráfego urbano sem abrir mão da possibilidade de abri-la em condições mais favoráveis como uma rápida ida à praia, por outro a maior facilidade de acesso aliada à eliminação da interferência do mecanismo da capota tanto no habitáculo quanto no compartimento de bagagens ficavam cada vez mais evidentes para o público generalista. Logo, não causaria tanta surpresa que um XR3 conversível passasse a ser cada vez mais tratado como mero objeto de curiosidade enquanto um Verona soava mais coerente às necessidades e anseios do consumidor.

Um caso em que a diferença de preços entre o conversível e um similar de capota rígida exacerbou-se numa proporção absurda foi o do Chevrolet Kadett, tendo em vista que os monoblocos fabricados no Brasil eram enviados para a Itália onde era feita a transformação em conversível pela Bertone, e em seguida repatriados para a montagem final. Dada a menor procura, que possivelmente desencorajava a instalação de ferramental específico para executar todas as etapas da produção dessa versão nas próprias instalações da General Motors do Brasil, não seria de se descartar pudesse ter recorrido a outra parceira que detivesse a capacidade técnica para fazer o serviço. Ainda que a concorrente Ford tivesse a facilidade de contar com uma filial da Karmann relativamente próxima para dispensar o envio de monoblocos do Escort para modificar na Alemanha, a GM poderia ter recorrido a empresas brasileiras como as hoje extintas Envemo e Sulam, que durante os anos 80 chegaram a transformar outros modelos como Chevette, Monza e Opala em conversíveis com anuência da fabricante. No caso da Envemo, chegou a ser homologada inclusive para a produção de alguns modelos "semi-oficiais" únicos no Brasil como a Veraneio M montada sobre o chassi curto da D-20 quando a produção das pick-ups full-size passou a ser concentrada na Argentina e o chassi longo anteriormente usado na Veraneio nacional e na D-20 de cabine dupla deixou de ser produzido.

Nos últimos 10 anos, talvez os fabricantes que mais tenham se destacado por tentar manter a oferta de conversíveis foram a Peugeot e a Renault, já valendo-se da capota rígida retrátil que era teoricamente mais adequada para conciliar os momentos de lazer com o teto aberto e a procura por um pouco mais de conforto e segurança no uso cotidiano. O baixo volume de vendas, porém, tornava mais viável a importação dos conversíveis diretamente da França, mesmo quando equivalentes fechados já eram feitos no Brasil como foi o caso do Peugeot 206 CC e do Renault Mégane CC, e assim o custo ficava ainda mais desfavorável em comparação aos modelos normais. Por mais que pudessem agradar a uma parte significativa dos consumidores pela pretensa "esportividade" frequentemente associada a esse tipo de carroceria, os prejuízos ao espaço no banco traseiro e no bagageiro também acabou levando a uma maior rejeição por parte do mercado.

De fato, hoje apenas segmentos mais prestigiosos se mantém convidativos aos conversíveis, e ainda assim podem ser feitas algumas ressalvas em virtude da situação caótica da segurança pública. Por mais que inicialmente possa soar para algum estrangeiro como paranóia, é importante destacar que no Brasil não é tão incomum blindar alguns carros que provavelmente estariam entre os menos indicados para a execução desse tipo de serviço no exterior, como por exemplo o Porsche 911. Mesmo sendo um modelo que se destaca facilmente em meio à frota circulante, o que seria de se supor que pudesse ao menos inibir tentativas de roubo ou sequestro, nem isso acaba sendo tão garantido, e portanto há sim quem deixe de escolher o conversível e prefira o modelo de teto rígido justamente por ser viável blindar. Diga-se de passagem, agora que a divisão de produtos controlados do Exército (responsável por homologar as empresas de blindagem no país) recentemente estabeleceu uma nova regra visando disciplinar uma gambiarra que algumas blindadoras faziam em veículos originalmente equipados com teto solar, exigindo que tal dispositivo seja permanentemente fechado quando estiver presente num carro blindado, parece impossível que venha a ser feita alguma provisão para acomodar tentativas de blindar um conversível.

A bem da verdade, como o Brasil definitivamente não é para principiantes e o povo aqui basicamente parece ser especialista em fazer gambiarra, até me surpreende que eu não tenha nem ao menos ouvido falar em alguma tentativa de blindar carros conversíveis no país. Mesmo que seja efetivamente uma idéia absurda, e vá contra os principais argumentos de vendas que possam ter sido usados a favor de modelos como o clássico Audi 80 Cabriolet com capota de lona ou o Volkswagen Eos dotado de uma capota rígida retrátil nas respectivas épocas, talvez não fosse tão improvável que algum Professor Pardal de plantão tentasse montar uma capota conversível blindada feita de Kevlar e placas de aço balístico já usadas na confecção de coletes à prova de balas caso não houvesse uma fiscalização por parte do Exército. Naturalmente, o acréscimo de peso agregado pela blindagem que já é problemático num carro normal ficaria ainda mais exacerbado num conversível, também em função do mecanismo (normalmente elétrico) de rebatimento da capota que ficaria submetido a uma carga excessiva para a qual não foi dimensionado.



Realmente a idéia de disfrutar da sensação de liberdade e maior contato com os elementos a bordo de um conversível pode soar convidativa, mas infelizmente está longe de ser a mais recomendável por causa de fatores alheios às especificidades inerentes a esses veículos. Se por um lado um Gurgel X-12 TL pode ser agradável para alguns passeios no verão, por outro uma preocupação com a segurança e a preferência por veículos considerados mais aptos a proporcionar ao menos uma maior sensação de resguardo em meio às intempéries e a alguns problemas causados pela desavergonhada presença de criminosos à solta. Enfim, por mais divertidos que sejam, é até compreensível que os conversíveis não tenham uma presença tão expressiva no mercado brasileiro.