sexta-feira, 31 de março de 2017

Motores de 4 cilindros em motocicletas: uma opção às vezes superestimada

O mercado motociclístico brasileiro, que permanece concentrando volumes de vendas mais elevados nas faixas de pequena cilindrada e por muito tempo esteve ainda mais atrasado em comparação aos Estados Unidos, Europa e Japão, vem experimentando uma maior participação dos motores de 4 cilindros nas faixas de cilindrada superiores a 500cc. A chegada da Honda CB 600F Hornet em 2004, já decorridos 6 anos do lançamento no mercado europeu, foi um fator decisivo para a popularização dessa concepção nas médias cilindradas. No entanto, se por um lado o desempenho proporcionado pelo compartilhamento do motor com as superesportivas (ligeiramente recalibrado para valores mais modestos) as tornou objeto de desejo para uma parte significativa do público brasileiro acostumada com o desenho mais tradicional que as nakeds ainda traziam à época, por outro as curvas de potência e torque deslocadas para regimes de rotação mais elevados as tornavam menos convenientes no uso urbano em comparação às parallel-twin como a CB 500 indiretamente substituída pela Hornet.

Convém recordar que, em função do isolamento tecnológico que o Brasil vivenciava entre '76 e '90 enquanto vigorava a proibição das importações e do pouco investimento que a Honda e a Yamaha se dispunham a fazer durante a chamada "década perdida" em um mercado que passou a tratar as motos mais como um veículo utilitário de custo operacional reduzido desde os choques do petróleo e então priorizava modelos como a líder absoluta Honda CG 125, acabou por ocorrer uma percepção não apenas da cilindrada mas também da quantidade de cilindros como uma característica indicativa do prestígio que poderia ser atribuído a uma motocicleta a partir do lançamento da Honda CB 400 de 2 cilindros em '80 que foi a primeira motocicleta com mais de 1 cilindro produzida em série no país. A hegemonia da Honda, que se mantém até os dias de hoje, se vê desde então refletida nos modismos que vez por outra ganham alguma visibilidade. Naturalmente considerando os contextos das épocas e guardadas as devidas proporções, a CB 400 foi tão marcante quanto a Hornet para o que possa ser definido como um "amadurecimento" ou "evolução" do mercado motociclístico.

De fato, o custo de implantar no país durante a década de '80 o ferramental de produção para um motor de 4 cilindros como o da Honda CBX 750F (também conhecida como 7-Galo) acabaria tendo o retorno de investimento um tanto limitado pelo baixo volume de vendas no mercado interno então representado por uma meia-dúzia de gatos pingados com bala na agulha suficiente para satisfazer o desejo de ouvir o ronco de um motor de 4 cilindros e também a precariedade da infra-estrutura de transportes dificultando o escoamento da produção para exportação, ainda que a mão-de-obra lá em Manaus seja mais barata que nas fábricas instaladas no Japão. Introduzida em '86 ainda importada no regime CKD para ser montada apenas com peças japonesas, passou a ter nacionalização progressiva a partir de '87 indo até '94 quando já enfrentava a concorrência das importadas que além do maior conteúdo tecnológico ainda vinham com um custo mais competitivo. Embora estivesse longe de alcançar um público mais generalista que viria a ser alcançado 10 anos depois pela Hornet, não se pode negar que a 7-Galo teve importância para dar visibilidade aos motores de 4 cilindros no mercado motociclístico brasileiro.

Mas a que ponto um motor de 4 cilindros seria contestável? Em que pese a potência de uma Suzuki GSX 650F chegando quase ao triplo do mesmo parâmetro na LS 650 Savage/Boulevard S40, bem como o torque 23,6% mais elevado, não se pode ignorar tanto as faixas de rotação e o impacto no consumo de combustível e durabilidade quanto o custo de fabricação de motores com diferentes configurações e o quão adequados seriam à proposta de cada modelo. Naturalmente a sofisticação do layout de 4 cilindros é bem-vista numa esportiva, em contraste à proposta mais conservadora das custom que favorecem motores com uma quantidade menor de cilindros, além do volume físico também impor diferentes graus de dificuldade para a acomodação nos chassis de cada moto. Nesse sentido, mesmo tendo em vista as nítidas diferenças entre os segmentos de mercado, um motor mais simples e compacto como o da Savage que ainda prioriza respostas consistentes por toda a faixa útil ao invés de estarem concentradas nos regimes de rotação mais elevados tende a encontrar um público fiel.

Outros casos que evidenciam vantagens inerentes a motores com uma menor quantidade de cilindros são modelos de uso misto com uma maior aptidão a percursos off-road, como a Suzuki DR800S Dual Sport e a KTM Super Enduro 950R. Além da já mencionada distribuição das faixas de potência e torque em regimes de rotação mais modestos, as dimensões mais compactas e o menor peso de um motor monocilíndrico como o da Suzuki ou mesmo o bicilíndrico (nesse caso em V) da KTM são muito apreciadas nas condições de terreno severas às quais uma big-trail raiz venha a ser submetida. Ainda que uma quantidade maior de cilindros seja apontada como vantajosa para o desempenho ao manter um volume menor para cada câmara de combustão de modo a proporcionar uma maior homogeneidade na queima do combustível, principalmente numa moto de alta cilindrada, nem sempre tal presunção se confirma em condições reais de uso. Portanto, além de um custo menor desde a fabricação e a aquisição até procedimentos de manutenção mais complexos que venham a se fazer necessários, há outros pretextos válidos para justificar uma eventual rejeição aos motores de 4 cilindros não apenas nesse segmento.

Por mais que a Honda tenha de fato tornado a progressão para uma "4 canecos" uma opção até certo ponto mais condizente com a realidade de uma parcela expressiva do mercado que considera não só o aspecto utilitário numa motocicleta mas também a utilização recreacional, bem como um simbolismo a meu ver equivocado de ascensão social materializado na capacidade volumétrica e na quantidade de cilindros, nem sempre se mostra tão espetacular diante do maior equilíbrio entre desempenho e eficiência que se observa em alguns modelos de porte semelhante com menos cilindros. A própria Honda se viu compelida a trazer para o Brasil uma nova geração da icônica CB 500 em 2013, o que de certa forma acaba por evidenciar que a tentativa de substituição pela Hornet foi um grave erro estratégico. Enfim, por mais que gozem de certo prestígio, não seria errado considerar que as motos de 4 cilindros acabem sendo superestimadas mais em função das condições econômicas e sociais do nosso país que de eventuais vantagens que pudessem apresentar diante de concorrentes mais simples.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Carros "populares": seria a cilindrada um parâmetro realmente justo para a classificação nessa categoria?

Definir com exatidão os parâmetros mais adequados para classificar um automóvel como "popular" é algo mais complexo do que possa parecer, englobando diversos parâmetros que vão desde aspectos práticos até burocracias que podem sofrer variações de acordo com regulamentações, preferências e condições ambientais de cada mercado. No entanto, algumas características como baixo custo de produção e manutenção (evidentemente de acordo com a tecnologia e o custo dos insumos à época do projeto), adequação a condições de rodagem um tanto precárias que possam vir a ser encontradas em algumas localidades e adaptabilidade da plataforma para atender a diferentes necessidades ainda são desejáveis, e em diferentes contextos históricos se mostraram bem aplicadas em modelos como o Ford Modelo T e o Fusca. Ao contrário dos carros "populares" brasileiros da atualidade, no entanto, cabe salientar que a cilindrada não foi tão determinante para que serem reconhecidos como tal.

A bem da verdade, a cilindrada como parâmetro para classificação de um automóvel como "popular" e tributação diferenciada no Brasil teve início com o Gurgel BR-800 SL, equipado com um motor de 2 cilindros horizontalmente opostos ("boxer" ou flat-twin) dentro do limite de 800cc estabelecido pelo então presidente José Sarney em '86. Em que pesem as limitações de um hatch subcompacto, principalmente no tocante à versatilidade, o projeto tinha seus méritos. No entanto, a escala de produção praticamente artesanal acabou sendo tão problemática quanto uma "especialização" ao uso urbano. Além da capacidade de carga e/ou acomodação para passageiros que venha a se fazer necessária em se tratando de um veículo que venha a ser o único ao que uma família tenha acesso, também não deve ser ignorada a aptidão a eventuais percursos rodoviários que possam vir a ser motivados tanto por motivos profissionais quanto no lazer e outros assuntos particulares/familiares. A reação de fabricantes estrangeiros encabeçada pela Fiat a partir de '90, quando o limite de cilindrada foi expandido para 1000cc pelo então presidente Fernando Collor de Mello passando a abranger modelos como o Uno Mille, acabou tendo maior aceitação junto ao público.

Deixando de lado as polêmicas em torno das verdadeiras motivações por trás do aumento no limite de cilindrada, bem como de uma eventual capacidade que os fabricantes estrangeiros teriam para adequar os hatches compactos à faixa de até 800cc, os carros ditos "populares" passaram a ocupar posição de destaque no mercado brasileiro a partir daquela medida tomada por Collor, e 10 anos depois cerca de 70% de todos os veículos 0km comercializados no país estavam enquadrados nessa categoria e já não se limitavam apenas aos hatches. É evidente que a evolução dos sistemas de injeção e ignição eletrônicos, bem como uma aceitação mais ampla de outros elementos mais sofisticados como os cabeçotes multiválvulas, acabaram por reduzir prejuízos ao desempenho em modelos com carrocerias maiores, mais volumosas e pesadas como sedãs, station-wagons e furgonetas, e portanto ficava mais fácil atender a consumidores em busca de um único veículo que se adequasse a diferentes necessidades da unidade familiar que fosse servir-se do mesmo. Cabe lembrar o caso da Fiat que, entre '98 e 2000 preferiu recorrer a um câmbio de 6 marchas para o Siena e a Palio Weekend equipados com o motor 1.0L de 8 válvulas ao invés de incorporar um cabeçote de 16 válvulas.

A aplicação de motores 1.0L a utilitários, como ocorreu no Fiat Fiorino e no Renault Kangoo, instiga a uma reflexão em torno das desvantagens inerentes a um limite de cilindrada definido de uma forma tão arbitrária e cujo embasamento técnico se mostrou, de fato, um tanto questionável. Submetidos ao fator de carga mais alto que seria de se esperar em uma caminhonete, combinado ao deslocamento das faixas de potência e torque para regimes de rotação mais elevados, o mito em torno de uma vantagem incontestável na economia de combustível quando comparado a um similar de cilindrada mais elevada é facilmente derrubado. Além do maior consumo, mas ainda levando em consideração a necessidade de compensar o baixo torque através de relações de transmissão mais curtas para proporcionar alguma agilidade às custas de uma diminuição da velocidade máxima, também não é possível ignorar um eventual prejuízo à vida útil do motor a ser causado pela operação prolongada a regimes de rotação mais elevados, o que viria a acarretar num custo de manutenção mais alto a longo prazo.

Tendo em vista eventuais limitações que um motor de baixa cilindrada venha a apresentar, cabe mencionar a experiência de sucesso do Japão com os kei-jidosha. Além da cilindrada, que desde '90 está limitada a 660cc no mercado japonês (JDM - Japanese Domestic Market), e de um limite de potência de 64cv estipulado na mesma época diante da popularização do turbocompressor, o tamanho contido e o baixo peso (lembrando que "kei" é leve em japonês) minimizavam o esforço ao qual o conjunto mecânico estava submetido. Embora as versões de modelos como o Subaru Vivio e o Daihatsu Cuore que chegaram a ser oferecidas no Brasil durante a década de '90 fossem mais simples, não havia impedimentos para a presença de elementos mais sofisticados oferecidos ao público japonês como o câmbio automático que favorecia o conforto nas congestionadas metrópoles e a tração 4x4 que se mostrava útil em condições de baixa aderência como a presença de neve na pista. Naturalmente, a questão das limitações de cilindrada e tamanho também suscitam controvérsias não só no Japão mas também em mercados de exportação. Se por um lado a Subaru mantinha o motor de 0.66L no Vivio em todos os países onde foi comercializado, por outro a Daihatsu lançava mão de motores maiores para o Cuore como o de 0.8L que foi usado no Brasil.

Ainda que as restrições de comprimento em 3,40m, largura de 1,48m e altura de 2 metros em vigor desde outubro de '98 pudessem sugerir uma limitação a hatches, também surgiram utilitários na classe kei como o jipinho Suzuki Samurai e a microvan Suzuki Carry, que gozaram de algum prestígio em mercados internacionais, e no caso da Carry acabou tornando-se um dos veículos mais copiados do mundo tanto em versões licenciadas como a Daewoo Damas sul-coreana quanto uma infinidade de modelos chineses. Como já seria de se esperar, nas versões destinadas à comercialização fora do Japão predominam motores acima de 660cc. Embora restrições com base no tamanho pudessem se tornar impopulares no Brasil, tanto em função de um comprometimento na capacidade volumétrica de carga e na acomodação de passageiros em um jipinho quanto na percepção de uma menor proteção aos ocupantes em caso de colisão frontal a bordo de uma van com posto de condução avançado, é coerente a estratégia japonesa de relacionar a cilindrada ao tamanho máximo para evitar que um motor tão diminuto trabalhe muito sobrecarregado a ponto de tornar o desempenho insatisfatório e sacrificar a economia de combustível.

Convém lançar uma observação sobre o Toyota Etios e o Peugeot 208, que de certa forma fugiram à regra ao usar somente motores acima de 1.0L mesmo quando os respectivos fabricantes dispõem no exterior de motores que poderiam ser enquadrados no limite de cilindrada que os enquadraria na definição de carro "popular" no mercado brasileiro. No caso do Etios, disponível com motores de 4 cilindros entre 1.3L (exclusivo para o hatch) e 1.5L (tanto para o hatch quanto para o sedan), o desempenho foi mais enfatizado pela Toyota, valendo-se ainda da correlação que o consumidor brasileiro ainda insiste em fazer entre cilindrada e prestígio mesmo sem levar em conta a tecnologia aplicada ao motor. Já a Peugeot vem enfatizando justamente na eficiência do motor de 3 cilindros e 1.2L, que se mostra competitivo também diante da versão de 1.0L do mesmo motor disponibilizada em mercados estrangeiros. Há de se levar em consideração ainda a escala de produção que acaba por favorecer os motores acima de 1.0L, beneficiados também pela aplicabilidade a modelos de porte mais avantajado (e naturalmente mais pesados) que um hatch compacto.

Outro caso em que a cilindrada se mostrou um parâmetro até estúpido para que um carro pudesse ser classificado como "popular" foi o Fusca "Itamar" produzido entre '93 e '96 com o tradicional motor boxer refrigerado a ar de 1.6L, valendo-se de uma exceção especialmente aberta pelo então presidente Itamar Franco para que motores refrigerados a ar destinados ao uso em carros "populares" pudessem ter uma cilindrada mais alta. De certa forma, apesar do uso mais intenso de materiais nobres como liga de alumínio-magnésio na produção do motor, bem como do processo de manufatura com um menor grau de automação em comparação a modelos de projeto comparativamente mais moderno, o Fusca evidenciou que havia espaço para um veículo com menor complexidade mecânica e uma aptidão maior a condições de rodagem severas que se mostram mais desafiadoras para uma concorrência que à época se concentrava em versões depauperadas de compactos e subcompactos europeus projetados entre as décadas de '70 e '90 com motores um tanto subdimensionados (e ainda mais limitados para suportar melhor a qualidade inferior da gasolina comercializada no Brasil).

Também merece menção especial a Fiat, que disponibilizava em mercados de exportação uma versão de 8 válvulas e 67cv do motor Fire 1.3 ao invés do 1.0 de 16 válvulas e 70cv exclusivo para o Brasil. Ainda que a potência parecesse favorecer o motor menor, o torque em baixas rotações mais farto no 1.3 o tornava até mais econômico, além do custo de produção menor inerente ao cabeçote mais simples. Entre o fim de 2002 e o começo de 2003, a Fiat acabou substituindo no mercado nacional o motor 1.0 de 16 válvulas pelo 1.3 de 8 válvulas, sem aumento de preços nos modelos afetados. Curiosamente, como naquele período ainda havia alguma procura por modelos movidos somente a etanol (então referido comercialmente apenas como "álcool"), que também eram favorecidos por uma tributação diferenciada, o antigo motor Fiasa ainda foi mantido ao menos até o final de 2004 apenas numa versão de 1.5L para atender a essa parcela do público consumidor enquanto os "flex" começavam a se consolidar. A disponibilidade do motor de 1.5L a etanol como opção para o Siena Fire, que teve como padrão o motor Fire 1.0 de 8 válvulas a gasolina até que se tornasse "flex" em 2004, de certa forma acabava por também reforçar a incoerência no uso da cilindrada como parâmetro para classificar um carro "popular".

A cilindrada como único fator para a classificação de um veículo na faixa tributária dos "populares" leva ainda a algumas incoerências, como a inclusão de modelos que no mercado brasileiro são até vistos como "de prestígio" como o Volkswagen Golf 1.0TSI que recorre ao turbo para proporcionar um desempenho mais aceitável a um modelo desse porte. Por mais que alguns possam argumentar que o benefício fiscal acabe sendo o único motivo para uma incorporação mais frequente de tecnologias destinadas a uma melhoria da eficiência energética como seria o caso do downsizing aplicado ao Golf, e até certo ponto não deixem de ter razão, não deixa de ser um desvio da proposta original que era simplesmente tornar um automóvel 0km acessível a uma parcela mais expressiva da população brasileira. Dessa forma, não seria de se estranhar que os mesmos defensores de um benefício fiscal a modelos de classes tidas como mais "nobres" no mercado brasileiro em função da incorporação de tecnologias voltadas à economia de combustível tivessem um menor apego à cilindrada, abrangendo assim também os híbridos como o Toyota Prius mesmo sendo dotado de um motor de 1.8L a gasolina associado a 2 motores elétricos.
Considerando ainda a operação mais intermitente do motor de combustão interna num híbrido durante o tráfego urbano, bem como a configuração um tanto conservadora que estes tem adotado mesmo nesse período em que o turbo e a injeção direta vão se massificando em modelos com um sistema de tração mais convencional, convém lançar um olhar sobre outros aspectos que norteiam o desenvolvimento de um motor. O recurso a um prolongamento da abertura das válvulas de admissão, avançando sobre a fase de compressão num motor de 4 tempos do ciclo Otto, tem como premissas emular uma característica inerente ao ciclo Atkinson que é a duração mais longa da fase de expansão em comparação à compressão e também diminuir as chamadas "perdas por bombeamento" por meio de uma redução na compressão dinâmica, e acabou tornando-se muito comum nos híbridos. Um tópico que poderia suscitar discussões mais acaloradas especialmente no Brasil quando se recorre a esse expediente é a menor adequação ao uso do etanol, que apresenta maiores dificuldades para vaporizar durante a partida a frio quando a temperatura ambiente encontra-se muito baixa, e alguma tentativa de induzir um maior aquecimento aerodinâmico valendo-se da variação de fase do comando de válvulas para promover o fechamento das válvulas de admissão em parâmetros mais próximos dos motores mais tradicionais até poderia servir para contornar esse problema mas dependeria de uma detecção prévia do teor de etanol no combustível ao invés de fazer correções de mistura de acordo com a medição efetuada após a combustão pelo sensor de oxigênio (popularmente conhecida como "sonda lambda").

Por mais incrível que possa parecer, outro modelo que de certa forma instiga a uma reflexão sobre as melhores estratégias para nortear o projeto de um motor adequado à proposta de um carro "popular" é o Jeep Willys original. A disposição das válvulas laterais aplicada aos primeiros modelos militares e também a modelos civis até o CJ-3A, apesar de ter algumas limitações inerentes aos fluxos de admissão e escape que forçam a um estreitamento das faixas de rotação, bem como a dificuldade em implementar taxas de compressão mais elevadas, ainda possibilita um layout mais compacto e leve do motor como é possível observar comparando a altura do capô entre um Willys MB da época da 2ª Guerra equipado com o motor Go-Devil de 2.2L com 4 cilindros e válvulas laterais e um Willys CJ-3B que já contava com o motor Hurricane da mesma cilindrada mas que já incorporava as válvulas de admissão no cabeçote enquanto mantinha as de escape no bloco (o popular "cabeçote em F"). Ainda que à primeira vista pareça uma configuração totalmente obsoleta e injustificável, a meu ver seria um tanto precipitado ignorar alguns benefícios que o recurso às válvulas laterais podem proporcionar a um projeto que venha a ser balizado pelo baixo custo na ausência de políticas tributárias direcionadas às baixas cilindradas.

Naturalmente um motor de concepção mais moderna com as válvulas no cabeçote é capaz de proporcionar um desempenho mais vigoroso tanto numa mesma faixa de cilindrada quanto em alguns casos numa inferior, sobretudo em função da aptidão a operar em faixas de rotação mais altas e da maior liberdade para alterar as taxas de compressão, mas o custo ainda foi um fator preponderante para que modelos pós-guerra como o Renault 4CV que já foi lançado com válvulas no cabeçote ainda tivessem concorrentes fiéis às válvulas laterais como o Ford Anglia E04A. Embora numa comparação direta entre o motor Renault Billancourt de 747cc usado no 4CV e o Ford Sidevalve de 933cc que equipou o Anglia não haja tanta discrepância entre as faixas de rotação, e surpreendentemente o pico de torque do Anglia seja atingido num regime de giro 15% mais elevado enquanto a potência máxima do 4CV é situada numa rotação apenas 2,5% superior, é mais frequente que um motor de válvulas laterais apresente tanto o pico de potência quanto o de torque a rotações consideravelmente mais baixas. Potência e torque específicos (divididos pela cilindrada) também costumam ser mais baixos, tanto em função dos fluxos de admissão e escape um tanto tortuosos quanto pela taxa de compressão frequentemente mais baixa. No entanto, o que poderia parecer um problema se mostra justificável diante da diminuição do risco de pré-ignição (a popular "batida de pino" ou "detonação") quando estiver em uso uma mistura ar/combustível mais pobre (menor quantidade de combustível em proporção à massa de ar), e também não provocar um aumento considerável das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) embora tal parâmetro não recebesse tanta relevância à época.

De um modo geral as características que se revelam mais coerentes à proposta de um carro "popular" estão relacionadas à aptidão para atender a usuários com os mais diferentes perfis dispondo de orçamentos restritos, sem desconsiderar os contextos econômicos e sociais de cada época. Nesse sentido, uma intervenção excessiva de burocratas que demonstram não dar a devida atenção a critérios técnicos pode vir a se tornar na verdade mais problemática do que pareça à primeira vista. Enfim, em meio a tantos parâmetros que possam definir o quão próximo um veículo esteja de atender tanto a uma maior variedade de condições operacionais quanto a necessidades mais específicas de alguma parte do público, tomar apenas a cilindrada como referência não deixa de ser uma medida injusta tanto para os consumidores que ficam limitados a opções mais precárias quanto para os fabricantes que se veem obrigados a fazer gambiarras que nem sempre justificam o custo de produção.

sábado, 18 de março de 2017

Reflexão: entre a potência e o preço de tabela, qual seria o parâmetro mais justo para balizar a concessão de isenções fiscais em veículos adquiridos por deficientes físicos?

Já é uma prática bastante antiga a concessão de isenções de impostos como o IPI, o ICMS, e quando aplicável o IOF, com o intuito de facilitar a aquisição de automóveis por deficientes físicos. Visto que em alguns casos é imprescindível o uso de direção assistida (que mesmo com uma presença mais maciça da direção assistida eletricamente ainda é mais comum que se mencione a "direção hidráulica") e câmbio automático, que por muito tempo estiveram restritos a segmentos mais prestigiosos do mercado, bem como o custo inerente às adaptações a serem feitas para que o condutor com deficiência possa usufruir do veículo com a devida comodidade e segurança, é até justo que ocorra essa renúncia fiscal. No entanto, o parâmetro hoje em vigor, limitando a aquisição de veículos nacionais ou provenientes do Mercosul ou do México com preço de tabela até R$70.000,00 sem as isenções de impostos, vem sendo bastante criticado pela defasagem frente à inflação e portanto dificultando o acesso a modelos com características que possam parecer um simples "luxo" ou "mimo" mas na verdade tornam-se até fundamentais para uma condução segura do veículo.
Até 2007 ainda vigorava a restrição com base na potência do veículo, que não deveria ultrapassar os 127cv, medida um tanto criticada e que em alguns modelos como o Toyota Corolla E120 (vulgo "Brad") limitava o acesso à versão XLi dotada de motor 3ZZ-FE 1.6L com 110cv mas que à época não trazia airbags nem freios ABS que só estavam disponíveis nas versões XEi e SE-G equipadas com motor 1ZZ-FE 1.8L de 136cv. Considerando que todos os veículos a serem adquiridos com a renúncia fiscal devem ser encomendados na modalidade de "vendas diretas", bem como o certo grau de flexibilidade inerente ao sistema de produção da Toyota, até não seria de todo impossível que tivessem oferecido o motor menos potente em todas as versões para melhor atender a clientes com alguma deficiência física que não abrissem mão de alguns itens presentes apenas nas mais caras e preferissem migrar para modelos de outros fabricantes. No caso da geração anterior E110, que contou em todas as versões de fabricação nacional apenas com o motor 7A-FE de 1.8L e 116cv (excetuando alguns exemplares de exportação com o motor 2C de 2.0L e 72cv movido a óleo diesel), o cliente beneficiado pela tributação diferenciada tinha uma maior liberdade de escolha quanto à oferta de equipamentos que melhor conviesse.

Já com a geração E170, antes do recente facelift, a estratégia da Toyota era suprimir alguns equipamentos para manter a versão GLi dentro do limite de R$70.000,00 estipulado pela Receita Federal para concessão das isenções de impostos. Quem prefira uma versão com nível de equipamento melhor até pode adquirir, mas a renúncia fiscal torna-se menos abrangente. Uma situação semelhante tem ocorrido também em outros modelos que vem se destacando na preferência do público-alvo dessa medida, como é o caso do Jeep Renegade que passou a contar com uma versão referida em catálogos apenas como "1.8 Automático Flex" e que por incrível que pareça é tabelada a um preço inferior ao da equivalente com câmbio manual, e portanto a venda é limitada a deficientes. Tal situação poderia servir de pretexto para tecer críticas à margem de lucro dos fabricantes instalados no país, mas convenhamos que o peso da carga tributária sobre o custo de um veículo 0km seja mais repreensível, afinal a livre-iniciativa deveria pressupor também uma liberdade para quem produz poder fixar o preço do produto que venha a oferecer. Ou alguém em sã consciência ainda acredita em devaneios como a "inflação zero por decreto" que o ex-presidente José Sarney tentou instituir?
De certa forma, apesar de ter ficado um tanto defasada diante da evolução tecnológica dos motores, a antiga norma que limitava a potência a até 127cv como parâmetro para a concessão dos benefícios fiscais ainda me parecia mais eficaz. É possível que as alíquotas de IPI atreladas à cilindrada, bem como a percepção de motores maiores como uma característica de prestígio, acabem por dificultar um retorno da medida, embora não haja qualquer impedimento tanto de ordem técnica quanto logística para que os fabricantes pudessem se adequar sem maiores prejuízos e atender ao consumidor com deficiência física de uma forma mais coerente com as preferências ou mesmo necessidades que venha a ter por algum equipamento mais específico como centrais multimídia com controle no volante e conectividade com celulares que podem ser úteis para um paraplégico ou para um amputado de membro superior possam manter sempre uma mão no volante enquanto utilizam o acessório com o veículo em movimento. As alegações que balizaram a fixação de um preço máximo para o veículo sem as isenções, em torno de um suposto "enriquecimento ilícito" que o proprietário poderia obter no momento da revenda do carro depois de usado, além de discriminatórias ainda são até irônicas tendo em vista que foram instituídas durante um dos governos mais corruptos que já se instalaram nesse país. O prazo mínimo de 3 anos entre as concessões do benefício também parecem um mecanismo eficaz para inibir abusos, considerando a depreciação inerente a qualquer veículo.
As restrições pelo preço de tabela já se tornaram um problema não apenas para deficientes condutores mas também para os não-condutores. Modelos como o Fiat Doblò, que chegou a ser o mais usado como base para adaptações para o embarque de um passageiro na própria cadeira de rodas, já não são contemplados pela faixa mais abrangente de isenção de impostos. Em alguns casos, a opção por dispensar a transferência entre a cadeira de rodas e um assento original do veículo não é apenas mais rápida e prática como também a mais segura no caso de lesões medulares mais graves que requeiram o uso de equipamentos específicos cuja manipulação excessiva pode causar desconforto e até tornar-se perigosa para o deficiente, como acontece com os respiradores usados por alguns tetraplégicos. Portanto, não é nenhum exagero qualificar como desumano o tratamento que a Receita Federal vem dispensando a tantos cidadãos que dependem de um veículo adaptado para ter assegurada uma vida mais digna e um acesso mais fácil não apenas a serviços especializados de saúde mas também a algumas oportunidades de trabalho, lazer e integração social que vem se abrindo tanto por força de leis quanto por pela importância que as políticas de "responsabilidade social" de empresas e instituições passaram a ter junto ao público em geral.

Por mais que atualmente até modelos subcompactos "populares" como o Volkswagen up! disponham de opções como o câmbio automatizado (mais leve e barato que um automático convencional), apto a atender motoristas que buscam por uma maior simplicidade na adaptação e a possibilidade de se adequar a diferentes graus de deficiência física, nem sempre um modelo tão "especializado" é capaz de oferecer versatilidade comparável a outros de porte mais avantajado como o Volkswagen Jetta no momento que de conciliar a capacidade de carga necessária para transportar equipamentos de acessibilidade e reabilitação e a acomodação de passageiros. Portanto, um eventual downgrade que beneficiários da renúncia fiscal se vejam forçados a fazer para usufruir desse direito ao trocar de veículo poderia ser evitado se o bom-senso prevalecesse na administração pública. Enfim, em que pese toda a conjuntura econômica e social do país, bem como algumas discrepâncias específicas do mercado automotivo brasileiro, ainda me pareceria menos incoerente estabelecer as faixas de isenção de impostos na aquisição de automóveis por deficientes físicos de acordo com a potência.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Suzuki LS650 Savage/Boulevard S40

Por mais que o segmento das motos "custom" tenha consolidado uma preferência por motores de 2 cilindros em V, essa não é uma regra geral. Um modelo que se diferencia desse padrão é a Suzuki LS650 Savage, que já não é mais oferecida no mercado brasileiro mas continua no exterior rebatizada como Boulevard S40. O motor monocilíndrico de 652cc ou 39,8pol³ refrigerado a ar, com 4 válvulas acionadas por comando simples no cabeçote é "quadrado", com diâmetro e curso idênticos de 94mm ou 3,7 polegadas, e portanto as faixas de potência e torque ainda que modestas concentram-se em faixas de rotação mais baixas, o que pode ser considerado benéfico tendo em vista também a durabilidade. A concepção simples, bem como o tamanho relativamente compacto com referência à faixa de cilindrada, a tornam uma opção atrativa até para motociclistas iniciantes.
Ainda que às vezes seja um tanto subestimada diante de concorrentes como a Honda VT 600 C Shadow e a Yamaha XV 535 Virago, dotadas de motores de 2 cilindros em V à moda das Harley-Davidson, está longe de ser "inferior" em qualquer aspecto. Convém salientar que, apesar de ainda contar com carburador nos mercados onde atualmente é comercializada mesmo diante de normas de emissões mais rigorosas que as brasileiras, a Savage/Boulevard S40 permanece em linha enquanto a Shadow e a Virago já foram efetivamente substituídas em todos os principais mercados.