sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Ainda haveria espaço para um Fusca 0km no mercado brasileiro?

Não se pode negar que o Fusca é do tipo ame-ou-odeie, sendo impossível ficar indiferente diante desse verdadeiro ícone histórico. Ainda muito apreciado principalmente em zonas rurais devido à capacidade de incursão off-road que não foi igualada pelas gerações de carros "populares" que o seguiram, apesar de manter entusiastas fiéis também nas cidades grandes, o modelo é apontado por detratores como o símbolo do atraso tecnológico que se instalou no Brasil e tem impactos até hoje. Mas considerando as condições de rodagem severas ainda muito comuns não só no interior do país mas também nas periferias de regiões metropolitanas, ainda haveria algum espaço no mercado automotivo brasileiro para um veículo como o Fusca?

Naturalmente o motor refrigerado a ar, que por sua vez já é uma outra obra-prima, seria um empecilho para seguir enquadrado nas normas de emissões a partir de 2012 quando a Euro-5 passou a vigorar no Brasil, além de ser de fato mais dependente do próprio combustível para auxiliar na refrigeração quando comparado a concorrentes já dotados da refrigeração líquida. A maior irregularidade da marcha-lenta logo após a partida a frio é outro ponto crítico, principalmente se considerarmos um eventual uso do etanol como combustível, tendo em vista que depende basicamente do pequeno radiador de óleo para proporcionar algum controle de temperatura mais preciso. Por outro lado, talvez a complexidade inerente a essa alteração pudesse ser a pá de cal diante de uma parte mais expressiva do público que ainda pudesse demonstrar algum interesse num Fusca 0km. A maior dificuldade para integrar a grade de um radiador às linhas originais do Fusca também seria algo bem mais desafiador do que foi para a Transporter T3 (a "Kombi quadrada" que nunca foi oferecida regularmente no mercado local) durante a transição da refrigeração a ar para o Wasserboxer.
A bem da verdade, as características mais relevantes do Wasserboxer quando comparado aos motores de 4 e 5 cilindros em linha usados em versões sul-africanas da T3 eram não só a posição horizontal que permitia manter uma menor intrusão do compartimento do motor na área de carga mas também a permanência do comando de válvulas no bloco com sincronização direta por engrenagens. Fabricado somente entre '82 e '92, em versões de 1.9L e 2.1L e não sendo usado em nenhum outro modelo da Volkswagen, seria muito improvável que pudesse ser produzido justamente no Brasil mesmo após ser descontinuado na Europa, e solenemente ignorado na África do Sul em função da escala de produção dos motores de 5 cilindros compartilhados com a linha da Audi à época e o EA827 "AP" 1.8 para as versões mais simples e que também chegou a ser usado na Kombi brasileira quando era exportada para o México.
O uso posterior do motor EA111 em versão de 1.4L "flex" a gasolina e etanol nas últimas versões da Kombi destinadas ao mercado brasileiro, mantendo a aparência das 1.8 de especificação mexicana, é convidativo à reflexão sobre outro aspecto que poderia ser mais relevante para a grande maioria dos consumidores brasileiros a partir da década de '90. Como a carcaça do câmbio de 4 marchas que foi usado na Kombi até o fim da produção era a mesma também aplicada a modelos de motor dianteiro como o Santana, mudando apenas o lado em que era montada a coroa do diferencial para inverter o sentido de rotação de saída, e tendo em vista que modelos Volkswagen e Audi antigos de motor longitudinal contaram também com a opção pelo câmbio de 5 marchas (inclusive a já mencionada T3), ao menos teoricamente não deveria haver nenhum empecilho para ser oferecido também na Kombi e eventualmente até no Fusca, aproveitando a economia de escala com o restante da linha.

O breve ciclo do "Fusca Itamar", que teve a produção reiniciada entre '93 e '96 por sugestão do então presidente Itamar Franco, tinha como justificativa incentivar a produção de carros "populares" ainda que o motor de 1.6L refrigerado a ar fugisse da definição inicial de uma faixa de cilindrada até 1.0L para a concessão de incentivos fiscais, e acabou tornando-se alvo de questionamentos quanto a talvez ter feito mais sentido montar esse mesmo em substituição ao CHT/AE de refrigeração líquida usado no Gol 1000. De fato, considerando precedentes como o fato do motor boxer já haver equipado outras versões do Gol durante a década de '80, poderia até ser mais conveniente para a Volkswagen fazê-lo ao invés de relançar o Fusca, considerando também outros aspectos como a acessibilidade mais fácil do bagageiro do Gol não só por dentro mas também por fora. Mas relembrando o que disse à época o publicitário Marcello Serpa, encarregado das propagandas de relançamento do Fusca, o aparente fracasso comercial nas grandes metrópoles era ofuscado pelo interior do país onde ofereceria melhor desempenho em condições de terreno severas comparado ao Gol e outros "populares" da época.

A bem da verdade, um ponto que aparenta ser até mais difícil de conciliar que o controle de emissões é o enquadramento em normas de segurança como a obrigatoriedade de airbag e freios ABS em vigor no Brasil desde 2014. Se por um lado o recurso ao chassi separado da carroceria é até mais propício a atualizações do que pudesse parecer à primeira vista, incluindo desde a substituição dos sistemas de suspensão por outros mais modernos que proporcionariam não só mais estabilidade mas até mesmo permitindo aumentar a capacidade do bagageiro dianteiro ou do tanque de combustível que poderia ser útil para compensar o maior consumo ao rodar no etanol, por outro a instalação de airbags apenas para cumprir a legislação mas sem contar com reforços estruturais seria como enxugar gelo. Mas como o brasileiro médio não tem demonstrado muita preocupação nesse sentido, o Fusca não teria maiores dificuldades para continuar atendendo a quem se dispusesse a comprar um caso tivesse permanecido em linha. Já no tocante aos freios ABS, cuja suposta incompatibilidade a plataformas muito antigas figurou como um dos pretextos para o encerramento da produção da Kombi no final de 2013, a presença do dispositivo até em motos como a Honda XRE 190 (nesse caso só na roda dianteira mesmo) leva a crer que essa alegação efetivamente não procedia. E mediante o alto grau de integração entre os sistemas eletrônicos em veículos novos, não é de se duvidar que até controles de tração e estabilidade fossem viáveis num Fusca que viesse a ser adaptado com injeção eletrônica e freios ABS...

Diga-se de passagem, hoje o tipo de veículo que até pode se aproximar mais de algumas das razões que fizeram do Fusca um sucesso são justamente motocicletas de pequena cilindrada, com destaque para a Honda CG. Recorrendo a side-cars, é até possível fazer com que as capacidades de carga e/ou passageiros se aproximem ao menos em parte dos parâmetros de um automóvel compacto, embora a viabilidade de se adaptar tração suplementar num side-car para assegurar que consiga percorrer um trecho escorregadio ou não-pavimentado e assim atender de forma mais satisfatória a moradores de áreas rurais seja questionável. Naturalmente, há de se reconhecer que as motos e side-cars deixam a desejar no tocante à proteção dos passageiros e bagagens contra as intempéries, e a segurança em caso de impactos também não é lá grande coisa...

Com a economia deixando a desejar e a infraestrutura rodoviária cada vez mais sucateada, até certo ponto o Brasil poderia ter continuado bem servido pelo Fusca até os dias atuais. Ainda que realmente seja um projeto obsoleto, e a configuração de carroceria não seja tão atraente diante de veículos mais modernos e práticos para o uso cotidiano, seria no mínimo estúpido tentar desmerecer a importância que teve como um modelo pioneiro dentre os automóveis de proposta popular. Contemplando as mais distintas realidades regionais desse país de dimensões continentais com a resiliência necessária para atender às mais duras condições de rodagem a custos de aquisição e manutenção inferiores aos de utilitários com tração 4X4, o Fusca prova que ainda teria espaço no mercado brasileiro.

3 comentários:

Joel disse...

Eu acho que é pra frente que se anda, e motor refrigerado a ar hoje em dia já deveria se pensar em abolir eles até nas motos, e o Fusca também já é um projeto velho demais para que fosse mantido em linha. Mas como hoje é mesmo difícil os carros pequenos andarem no barro com a mesma maestria de um Fusca, ia ter muito colono querendo comprar.

Anônimo disse...

Teria sido mais fácil a Fiat manter o Uno Mille em linha do que a Volkswagen manter o Fusca. E hoje já tem muito Uno nas colônias.

Luciane disse...

Achar bonitinho é fácil, daí a comprar um Fusca a preço de coisa mais moderna é outra história. Teria que vir regulando de preço com o Fiat Mobi básico.

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