segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Por que o motor da Vespa clássica é uma verdadeira obra de arte da engenharia?

Uma obra de engenharia que às vezes parece ser injustamente subestimada, mesmo tendo sido de enorme valor para a própria difusão do veículo motorizado de um modo geral em regiões onde o Ford Modelo T e até o Fusca e o Citroën 2CV foram incapazes de alcançar o resultado que tiveram nos respectivos países de origem, o motor da Vespa conseguia unir simplicidade e versatilidade em proporções que eventualmente até os idealizadores do projeto da Vespa tenham ficado surpresos. A necessidade de transporte barato na Itália do imediato pós-guerra, aliada a dificuldades na obtenção de algumas peças com um desgaste mais frequente para reposição considerando tanto carros quanto motos de configuração mais convencional, certamente pesou muito a favor de um motor 2-tempos tão modesto e racional, que até incorporava soluções como a ventoinha de arrefecimento forçado junto ao volante magnético que supria eletricidade para os sistemas de ignição e iluminação, e a transmissão direta para a roda traseira sem corrente. E apesar da Vespa original de 1946 ter seguido desprovida de suspensão traseira até 1948, o conjunto motriz ter incorporado a função que caberia à balança de suspensão traseira em motos convencionais também foi uma medida que só reforça a genialidade do projeto de um motor tão compacto porém de incalculável valor tanto na reconstrução da Itália quanto na motorização de países tão diversos quanto a Índia, e até o Brasil onde a Vespa e a Lambretta eram praticamente um sinônimo de motos pequenas e econômicas antes da meteórica ascensão das indústrias automobilística e sobretudo motociclística japonesa como líderes mundiais.
É inevitável também fazer uma observação quanto ao uso do mesmo motor de scooters nas primeiras gerações de triciclos utilitários Piaggio Ape que, se por um lado sofriam pela idéia consolidada junto ao público brasileiro acerca da alegada "inferioridade" inerente a motocicletas e triciclos em comparação a um carro, por lado outro tiveram e ainda tem de certa forma uma importância na Índia talvez mais significativa que a alcançada pelo Ford Modelo T nos Estados Unidos, por mais que pudesse soar incrivelmente exagerado num primeiro momento. No caso do triciclo, que no Brasil foi produzido sob licença na época da Panauto e incorporava a denominação comercial Vespacar, certamente a velocidade máxima ao redor de 60km/h desencorajava a eventual pretensão de ao menos tentar o uso como veículo particular ou mesmo familiar devido à necessidade de um único veículo que atendesse tanto deslocamentos urbanos quanto trechos rodoviários ocasionais, e até uma Kombi corujinha 1200 que é certamente demasiado forçada para o motor que tinha chegar ao menos perto dos 100km/h causava menos receio de virar bola de futebol de caminhão, mas o mesmo projeto básico do veículo ainda segue em produção pela Bajaj só com modificações pontuais na Índia, entre as quais o atual uso de motores 4-tempos tanto com ignição por faísca a gasolina com opção pelo gás natural ou o gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha" - com o uso veicular proibido no Brasil) quanto algumas versões Diesel de aspiração atmosférica que apenas pelo recrudescimento de normas de emissões efetivamente chegam a substituir o clássico 2-tempos a gasolina. Por incrível que pareça, mesmo considerando a defasagem normalmente ocorrida em relação a normas de emissões para motocicletas e similares, de certa forma terem sido produzidas versões do clássico motor da Vespa enquadradas nas normas Euro-3 para ser vendida na Europa de 2010 a 2017 foi um feito notável, além de ter permanecido disponível para triciclos na Índia até 2020 quando as normas Bharat Stage 4 equivalentes à Euro-4 deram lugar às normas Bharat Stage 6 equivalentes à Euro-6 já tendo sido experimentada até a injeção direta e com um amplo uso de combustíveis gasosos para a operação como um minitáxi que permanece extremamente popular tanto na própria Índia quanto nos principais mercados de exportação das cópias indianas do Piaggio Ape clássico. 
Naturalmente uma simplicidade até extrema do motor 2-tempos ainda parecia ter aptidão de atender às preferências e necessidades de operadores mais austeros nas mais diversas regiões, inclusive na América Latina onde as condições econômicas e sociais nem sempre são favoráveis a uma reprodução tão fiel do American Way of Life que tem no automóvel um dos principais expoentes, embora nesse caso específico o Brasil ter permanecido por muito tempo com a idéia da moto mais como um veículo recreativo e tratado com descaso os triciclos utilitários tenha proporcionado a oportunidade para empresas de países como a Índia suprirem em parte essa demanda até o cerco começar a se fechar com a proibição da importação e do licenciamento de motos e assemelhados novos com motor 2-tempos a partir de 2008 na Colômbia sob alegações de poluírem em demasia. Por mais improvável ou absurda que possa soar qualquer alusão entre um triciclo utilitário que efetivamente serve como uma ferramenta de trabalho em algum país andino e o sucesso comercial de pick-ups e SUVs nos Estados Unidos junto ao público generalista, é inegável como o motor da Vespa ter também atendido necessidades de transporte intermediárias entre as motos e os carros compactos em ambiente urbano e periferias ainda tem reflexos mesmo após a substituição por motores 4-tempos motivada pelo enquadramento a normas de emissões mais recentes, embora o viés essencialmente utilitário de uma pick-up seja mais fácil para conciliar à imagem de prestígio desejada por uma imensa maioria dos que adquirem um veículo para uso privado/familiar enquanto um triciclo vai ser tratado no máximo como "exótico". Em que pese a velocidade máxima bastante restrita de um triciclo derivado da Vespa desencorajar o tratamento como uma alternativa legítima de custo reduzido a um carro tradicional, e tanto o Brasil quanto os Estados Unidos terem combatido durante a II Guerra Mundial em fronts externos, o motor da Vespa ter facilitado muito a reconstrução da Itália e influenciado uma motorização mais intensa do transporte em outras regiões como a Índia onde os triciclos autorickshaw ainda usados como alternativa a um táxi normal e também exportados em grande escala para a mesma finalidade tiveram origem no Piaggio Ape ou a Indonésia onde persiste uma cultura forte em torno de scooters até em parte pela antiga produção local da Vespa sob licença é sem sombra de dúvidas um feito notável.  
Com a indústria automobilística tratada pelo governo de Juscelino Kubitschek como uma necessidade mais urgente que a fabricação de motocicletas, chega a ser curioso o motor da Vespa clássica ter usado refrigeração a ar forçada por ventoinha tal qual ocorria com o boxer da Volkswagen que equipou modelos tão icônicos quanto o Fusca. Em que pese os motores 2-tempos de um modo geral serem às vezes tratados como "inferiores" devido à extrema simplicidade construtiva, a ponto de terem sido amplamente usados em carros subcompactos alemães imediatamente antes da Volkswagen efetivamente conquistar um espaço no mercado, e a necessidade de usar óleo ou misturado diretamente à gasolina ou dosado automaticamente por uma bomba ser frequentemente retratada como um foco de poluição, são inegáveis as contribuições que deram ao transporte leve em diferentes partes do mundo, tanto durante momentos de recuperação econômica da Europa no imediato pós-guerra quanto nos países "em desenvolvimento" ou subdesenvolvidos onde mesmo os automóveis convencionais mais básicos ainda são praticamente um artigo de luxo. Enfim, por mais que pareça difícil furar algumas bolhas tão diversas quanto a de um agroboy que cultua caminhonetes full-size, de um redneck americano cujo contato com o mundo é filtrado pela National Geographic, ou do brasileiro condicionado desde cedo a considerar uma moto como inerentemente inferior a um carro e um triciclo como mera gambiarra, na prática o motor da Vespa clássica considerando também as produções sob licença fora da Itália foi tão importante quanto outros ícones da engenharia como os motores do Ford Modelo T e o boxer da Volkswagen, e certamente mudou as vidas de muito mais gente mundo afora que os V8 small-block da Chevrolet que são também muito usados para inúmeras finalidades fora do mercado automotivo.

2 comentários:

Xracer disse...

Excelente post, e parabéns pela publicação no AutoEntusiastas, você eh uma enciclopédia ambulante, vasto saber, continue nos brindando esses conteúdos !

cRiPpLe_rOoStEr a.k.a. Kamikaze disse...

Para ser bem sincero, até me surpreendeu o Bob querer que a matéria fosse ao ar no AutoEntusiastas.

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