quinta-feira, 26 de julho de 2018

Uma rápida reflexão sobre Josef Ganz e o Fusca

A história do Fusca sempre foi rodeada de polêmicas, desde o financiamento do projeto a cargo da ditadura nacional-socialista até acusações de plágio feitas pela Tatra e que foram resolvidas extra-judicialmente em 1967 mediante o pagamento de 3 milhões de marcos alemães por parte da Volkswagen. Curiosamente, no dia 26 de julho do mesmo ano que as duas fabricantes famosas pelos respectivos motores refrigerados a ar entravam num entendimento, faleceu na Austrália o engenheiro-mecânico judeu húngaro Josef Ganz, que se tornou famoso na Alemanha durante o período entre-guerras como editor-chefe da extinta revista automobilística Motor-Kritik e também esteve envolvido com projetos de automóveis "populares" de pouco êxito comercial como o Bungartz Butz e o Standard Superior. Naturalmente a história de um judeu que desenvolveu um "Volkswagen" antes do lançamento do Fusca, e sem o apoio institucional do qual Ferdinand Porsche passou a dispor em 1934, é um bom pano de fundo para teorias de conspiração.

O protótipo Maikäfer que Josef Ganz desenvolveu em 1931 para a fabricante Adler já incorporava o layout básico de suspensão independente nas 4 rodas e chassi tubular tipo "espinha dorsal" que hoje é apontado como um dos principais pivôs das alegações de plágio, e permaneceu com o projetista após a empresa optar pelo desenvolvimento de modelos de tração dianteira. O caminho esteve então livre para contatos entre Ganz e o fabricante de motocicletas Willhelm Gutbrod em 1932, culminando com o lançamento do Standard Superior em 1933 que foi o primeiro modelo a usar a denominação "Volkswagen" em peças publicitárias. Vale destacar a sonoridade melhor desse nome em comparação a "Volksauto" que era usados nas primeiras referências oficiais a um projeto de carro "popular" que seria instituído para fins de propaganda da ditadura nazista. O precoce encerramento da produção  do Standard Superior em 1935, quando Josef Ganz já havia saído da Alemanha nazista para se instalar na Suíça, ocorreu em meio a uma infundada alegação de quebra de patente apresentada pela Tatra e resolvida apenas em 1941 com um ganho de causa para Ganz que não deixava de ser surpreendente diante do cenário político alemão na época, embora seja pouco provável que tenha chegado a receber a compensação financeira e que os valores que lhe eram devidos tenham sido usurpados pelos nazistas como o foram muitas propriedades confiscadas de seus legítimos proprietários. Usando como justificativa uma suposta semelhança no sistema de transmissão, que no entanto não procedia tendo em vista que o Standard Superior usava uma carcaça inteiriça para motor e câmbio com transmissão direta sem diferencial para os semi-eixos oscilantes enquanto o projeto da Tatra era para o uso de motor dianteiro e transmissão final por eixo cardan. E apesar de serem empresas sediadas em países diferentes, não há de se descartar uma eventual interferência de Hitler e Goebbels junto à Tatra com a clara intenção de denegrir a reputação do engenheiro judeu e desencorajar eventuais tentativas de competir contra o Fusca.

Apesar do formato até bastante parecido entre o Fusca e o Standard Superior, que estavam de acordo com modismos duma época em que a aerodinâmica ganhava espaço na indústria automobilística, é necessário observar algumas diferenças sobretudo no layout mecânico. Enquanto a posição de motor traseiro em orientação longitudinal foi decisivo para que o Fusca conquistasse a fama de boa aptidão a condições de rodagem severas, os projetos desenvolvidos por Josef Ganz tinham motor central-traseiro montado logo à frente do eixo motriz em posição transversal. Outro aspecto muito relevante é a maior similaridade do motor 2-tempos bicilíndrico do Standard Superior com os que eram usados em motocicletas, enquanto no Fusca se observa muita semelhança com um motor aeronáutico que Ferdinand Porsche havia desenvolvido quando ainda trabalhava na Daimler-Benz. Tamanho e peso menores também eram muito evidentes no Standard Superior, o que acabava impondo limitações na acomodação de passageiros e bagagens de modo que a comparação mais justa seria às motocicletas com side-car que permaneciam exercendo função análoga à de um carro "popular" na Alemanha durante o período entre-guerras. Técnicas construtivas como o uso de madeira revestida com couro sintético para fazer a carroceria do Standard Superior, também aplicadas a uma infinidade de outros mirocarros e também alguns triciclos alemães durante o período entre-guerras, certamente são outra dificuldade em função da menor escala de produção em comparação à carroceria de aço estampado do Fusca.

Guardadas as devidas proporções, a comparação entre modelos com uma concepção tão distinta chega a lembrar vagamente a situação ocorrida no Brasil com o Gurgel BR-800 SL e posteriormente o Supermini, embora estes tenham concorrido por algum tempo com a concorrência dos fabricantes mais tradicionais antes que conchavos políticos eliminassem a Gurgel. Podemos começar observando o uso de materiais mais adequados à produção em pequena escala na carroceria mas que acabariam por encarecer demais caso o volume de vendas fosse mais expressivo, embora fosse usado no Gurgel o plástico reforçado com fibra de vidro ao invés da madeira e do couro sintético usados no Standard Superior. Em termos de chassi, ambos se destacavam por usar concepções que fugiam à regra geral de cada época, sendo que no Standard a "espinha dorsal" fazia contraponto aos chassis tipo escada enquanto no Gurgel uma space-frame tubular servia de alternativa aos monoblocos de aço estampado. No tocante aos motores, também merecia algum destaque o fato de ambos terem apenas 2 cilindros em contraste à predominância da configuração de 4 cilindros nos modelos compactos oferecidos por fabricantes tradicionais nos respectivos países em que pesasse o distanciamento histórico.

Embora a defesa entusiasmada de Josef Ganz por soluções como a suspensão independente nas 4 rodas com semi-eixos oscilantes na traseira e o chassi tipo "espinha dorsal" em artigos publicados na Motor-Kritik seja eventualmente ressaltada como evidência para teorias conspiratórias, é importante destacar a experiência de sucesso da Tatra com esse expediente e uma influência que teria exercido sobre o próprio Ganz para considerá-lo superior ao que se oferecia em maior escala na época. De fato, a perseguição nazista foi um fator decisivo para que a história caísse na obscuridade até que chamou a atenção do jornalista holandês Paul Schilperoord por volta de 2004 e deu origem a um livro lançado em 2009 sobre o tema. Enfim, por mais que tanto Josef Ganz quanto Ferdinand Porsche tivessem na prática um objetivo bastante parecido, e a chegada do Standard Superior ao mercado antes que o projeto do Fusca começasse oficialmente, as eventuais alegações de plágio abusam do sensacionalismo em torno da mancha negra do nazismo na história.

2 comentários:

Joel disse...

Polêmico mesmo. Uma coisa ou outra pode até levantar a teoria de que tenha acontecido um plágio, mas não foi uma coisa tão escancarada que não tenha como contestar.

Gustavo disse...

Tem muita coisa parecida, mas realmente dizer que é igual forçaria um pouco a barra.

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