quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Tração elétrica: mais distante de ser uma pá de cal sobre o motor a combustão interna do que poderia parecer

Ao avistar ontem um Tesla Model X pela 1ª vez, naturalmente surgiu aquele impacto inicial causado pelo desenho moderno desse modelo, que a bem da verdade é até visualmente agradável. No entanto, ao contrário de quem deposita esperanças em torno da competitividade que a Tesla inegavelmente agregou à tração elétrica no segmento dos veículos de luxo, há razões para não depositar exageradas esperanças na idéia de que a tração elétrica seja uma "salvação" no tocante à "sustentabilidade". De fato o predomínio das usinas hidrelétricas no fornecimento de eletricidade no Brasil pode parecer um pretexto para uma transição mais rápida do motor de combustão interna para o carro elétrico, mas há outros fatores que podem ainda colocar em xeque a viabilidade técnica dessa hipótese.

Uma disponibilidade relativamente fácil de alguma fonte de energia foi crucial para que a difusão do automóvel como uma opção viável de transporte acontecesse, antecedendo até mesmo a instalação de redes elétricas em algumas localidades mais remotas ou de baixa renda. Até mesmo o Ford Modelo T frequentemente enaltecido pela influência para as origens do "American Way of Life" ao fazer com que o carro familiar se tornasse um sonho acessível à classe média que começava a surgir nos Estados Unidos, só foi um sucesso comercial quando a gasolina ainda era vendida em lata nas farmácias porque também funcionava com querosene, álcool "moonshine" de milho produzido em casa por fazendeiros e com um óleo combustível mais volátil que era muito usado em tratores antigos. E hoje, mesmo que luz elétrica seja considerada um requisito mínimo em qualquer residência, não deixa de ser exagerado relegar o motor a combustão interna ao passado...

Mais recentemente tem ocorrido mundo afora uma caça ás bruxas fazendo do motor a combustão interna de modo geral um bode expiatório, com um impacto maior sobre os veículos dotados de motor Diesel que no Brasil está mais concentrado em aplicações pesadas devido à exigência de uma capacidade de carga nominal igual ou superior a 1000kg, ou mais de 8 passageiros além do motorista, ou tração 4X4 com caixa de transferência de dupla velocidade (a popular "reduzida") mas no exterior recentemente passou a ser alvo de desconfianças quanto à viabilidade em aplicações leves devido ao episódio conhecido como "Dieselgate" e protagonizado pela Volkswagen. Embora no exterior o gás natural vá se consolidando, e no Brasil de vez em quando seja reacendida alguma esperança em torno do etanol, a única certeza é que não tem feito tanto sentido nenhuma movimentação em torno da busca por uma única solução para os dilemas da renovação da matriz energética do transporte. E se por um lado os motores Diesel ainda se mantém firmes como a alternativa mais relevante em modelos mais pesados, a ponto de modelos como a Ford F-4000 nem sequer oferecerem algum motor de ignição por faísca como os que são disponibilizados nos equivalentes americanos e mexicanos, por outro em segmentos leves de entrada como o disputado pelo Volkswagen up! a barreira do custo inicial tem ficado cada vez maior em função do grau de sofisticação crescente de dispositivos de controle de emissões.

O que se pode dizer sem medo de errar é que os veículos híbridos, em especial os plug-in como é o caso de modelos de alguns fabricantes premium que tem recorrido a esse expediente em todas as versões híbridas, são uma realidade já impossível de ignorar. Desde modelos focados à proposta da esportividade como um Porsche Panamera Sport Turismo e-hybrid até um sport-utility full-size como o Volvo XC90 T8, não se pode ignorar que a capacidade de conectá-los à rede elétrica para recarregar as baterias não exclui o uso do motor a gasolina. Desafios que vão desde fatores de ordem técnica como a densidade energética e a durabilidade das baterias entre ciclos de recarga até outros que já não dependem só dos fabricantes de veículos como a geração e transmissão de energia elétrica em grande escala permanecem tornando a tração elétrica pura um tanto limitada no tocante ao atendimento das necessidades de uma parcela do público que não se disponha a adquirir veículos de nicho que tenham uma "especialização" mais exacerbada a ponto de torná-los inconvenientes em algumas situações. Em segmentos mais generalistas, não se pode esquecer que às vezes a simples indisponibilidade de uma garagem coberta exigia soluções técnicas diferenciadas para que veículos de proposta popular. Cabe traçar um paralelo com o Citroën 2CV e o Fusca que se valiam da refrigeração a ar para evitar danos ao sistema de refrigeração e até ao bloco do motor que poderiam ser causados pelo congelamento da água ao mantê-los estacionados ao relento durante o rigoroso inverno europeu antes que aditivos à base de etilenoglicol se tornassem comuns, e lembrando que mesmo na atualidade não são todas as residências que dispõem de uma garagem com fácil acesso a uma tomada que seria necessária para recarregar um veículo elétrico.

Mesmo com uma maior presença de carregadores rápidos em locais abertos ao público como shoppings e até mesmo postos de combustível, além da expansão no uso de fontes alternativas de energia como a fotovoltaica, seria incoerente ignorar que os motores a combustão interna ainda tem alguma importância no contexto do fechamento do ciclo do carbono. Tomando como exemplo a Fiat Strada, atualmente vendida no Brasil apenas em versões flex a gasolina e etanol mas que no exterior tem tanto versões só a gasolina quanto turbodiesel, já se torna relevante a possibilidade de usar o biogás/biometano tendo em vista que o não-uso de motores a combustão interna não viria a inibir a formação desse gás durante a decomposição da matéria orgânica em depósitos de lixo e estações de tratamento de esgoto, e que possui uma meia-vida na atmosfera mais longa que a do dióxido de carbono (CO² - "gás carbônico") pós-combustão que diga-se de passagem é essencial ao metabolismo vegetal. Lembrando ainda que alguns cultivares com potencial energético também são muito úteis para a fixação do nitrogênio no solo, até mesmo a formação dos óxidos de nitrogênio que ocorre num processo de combustão em condições reais (diferentes daquelas reações simplificadas ao extremo que se calculava nas aulas de química do ensino médio que resultavam só em CO² e água) pode ter os alegados efeitos nocivos compensados de forma absolutamente natural e promovendo a estabilização biológica.

Há de se considerar também o desenvolvimento agropecuário, com um potencial ainda subestimado para suprir em parte as necessidades energéticas do país principalmente em usos veiculares e também no maquinário agrícola e outros recursos técnicos. A experiência do etanol já amplamente difundido na aviação agrícola muito usada em lavouras como a do arroz por evitar a compactação do solo que seria causada pela aplicação de agroquímicos por outros meios, bem como uma eventual expansão do uso de tratores movidos a combustíveis gasosos hoje mais populares em áreas industriais e outros fins alheios à agricultura, são indícios de que a auto-suficiência energética do produtor rural que fascinava Rudolf Diesel após o sucesso da operação de protótipos de motores do ciclo Diesel com óleo de amendoim continua sendo uma meta realista. E por mais que o etanol hoje esteja desacreditado pelo público generalista mesmo com a presença maciça dos automóveis flex, talvez mais em função da dependência exacerbada pela cana de açúcar como matéria-prima mesmo que o etanol esteja aos poucos ganhando espaço principalmente no Centro-Oeste e possa também recorrer a muitas outras alternativas que incluem até o bagaço de uva que sobra da produção de vinhos, ainda é mais fácil de implementar para uso aeronáutico enquanto o biogás/biometano permaneceria mais relevante como uma opção para tratores e equipamentos estacionários como grupos geradores.
Ainda é predominante em grupos geradores de maior capacidade o uso do óleo diesel, não apenas em função da maior economia de combustível como da portabilidade, tendo em vista que mesmo com as variações na qualidade teria um suprimento relativamente fácil em diferentes regiões nas quais venha a ser requerido o uso desses dispositivos. Tanto durante emergências quanto para atender a eventuais incrementos momentâneos no consumo de eletricidade em eventos ou reduzir os custos com energia nos horários de pico e alterações das "bandeiras tarifárias", outro aspecto a se considerar que poderia beneficiar o setor agropecuário seria a possibilidade de usar biodiesel ou até mesmo óleos vegetais brutos diretamente como combustível. A operação contínua em velocidade constante por períodos longos viabiliza um aquecimento do óleo vegetal para reduzir a viscosidade e facilitar a combustão completa mesmo que se use um motor de injeção direta para acionar o dínamo/magneto, e até mesmo a defasagem das regulamentações de emissões comparadas ao segmento automotivo viria a facilitar o recurso aos óleos vegetais. Há de se lembrar também que ao menos em 2015 chegou a haver na Bahia uma queda na produção de feijão em rotação de cultura com o algodão em função dos custos da energia elétrica que se faria necessária para acionar pivôs de irrigação, e a bem da verdade teria feito algum sentido eventualmente usar óleo de semente de algodão para acionar geradores...
Mesmo que um motor Diesel como os usados em veículos utilitários e equipamentos estacionários pareça inicialmente mais "sujo" ao não incorporar as atuais gerações de dispositivos de controle de emissões, a possibilidade de recorrer a combustíveis alternativos já proporciona uma compensação, e ainda oferece uma perspectiva de aproveitar fontes de energia disponíveis localmente e assim atenuar o footprint ambiental da logística de combustíveis. Há de se levar em conta também uma eventual instabilidade na geração e distribuição de energia elétrica, que pode ser fortemente dependente das condições meteorológicas no caso das hidrelétricas brasileiras ou ter um restabelecimento mais lento da produção no caso das termelétricas a carvão muito usadas em países como a China, de modo que um motor de combustão interna permanece desejável sob o ponto de vista prático por ter uma partida mais imediata quando requerido, atendendo bem tanto a um gerador de backup para uso estacionário quanto a um automóvel híbrido plug-in como o BMW i8 ou o Porsche Panamera Sport Turismo e-hybrid, lembrando que em proporção à autonomia resultante ainda é mais rápido abastecer um tanque de combustível do que recarregar uma bateria na tomada (inclusive nos "supercarregadores" mais frequentemente instalados em pontos tidos como estratégicos).

Não se pode negar que a eletricidade parece ser uma solução fácil em função da maior capilaridade em comparação a combustíveis que requeiram armazenamento em condições específicas para garantir a segurança, mas está longe de ser "à prova de burro" e não dispensa alguns cuidados no manuseio de equipamentos e instalações. Fatores de ordem prática como a limitação na autonomia em veículos são outro empecilho, de modo que até um modelo puramente elétrico com apelo mais generalista como o BYD e6 chinês ainda fica longe de ser efetivamente apto a servir como o único veículo à disposição de um núcleo familiar por exemplo. Enfim, por mais que se criem expectativas um tanto exageradas, não é tão justo apontar a tração elétrica como uma pá de cal sobre o motor a combustão interna.

Um comentário:

Diego disse...

Só a maior dificuldade para evacuar áreas de catástrofes naturais já é um bom motivo para não querer ficar dependente de um carro totalmente elétrico.

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