segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Uma reflexão sobre como más escolhas na linha de motores fizeram a Ford cavar a própria cova

Houve uma época em que ninguém poderia supor que um dia a Ford aparentaria estar com a corda no pescoço por uma terceira vez em menos de 40 anos no mercado brasileiro, sendo que nas primeiras o problema poderia ser atribuído à escolha dos motores para equipar modelos disponibilizados no país mesmo antes de iniciar a produção nacional. Uma ênfase exagerada nos motores V8 para os full-size como o Fairlane, mesmo que no exterior não fosse tão incomum encontrá-los com o motor conhecido popularmente por "Mileage Maker Six", de certa forma reflete na atual situação de compactos como o Ka que hoje é o modelo de maior volume de vendas da marca no Brasil. Pode parecer loucura atribuir a um erro de mais de 60 anos atrás essa situação em que a operação brasileira da Ford se colocou de ter que procurar de tempos em tempos uma solução urgente para se manter competitiva, mas tem sido constante que o erro mais grave recaia exatamente sobre a linha de motores.
Após a reestilização mais recente, o Ka nacional passou a contar somente com motores de 3 cilindros e 1.0L ou 1.5L que são de fato modernos, e o maior problema hoje é o enxugamento pelo qual está passando a linha de automóveis em meio à maior ênfase que a Ford está dando para os SUVs a nível mundial. Até poderia eventualmente parecer muito simples tentar empurrar uma versão mais pé-duro do EcoSport para abranger mais facilmente o segmento de entrada, tendo em vista que a atual geração de SUVs "crossover" por ser baseada em plataformas de automóveis comuns não tem lá um aumento muito exponencial no custo de produção mas, como mesmo modelos compactos dessa categoria vem também sendo tratados como um tapa-buraco diante da menor disponibilidade de veículos com outros tipos de carroceria em faixas de tamanho e prestígio maiores, ainda resta uma "obrigação" de manter ao menos uma linha de automóveis mais generalista. Considerando que a atual geração do EcoSport é mais voltada a mercados mundiais, apesar de ter versões mais estreitas destinadas exclusivamente ao Japão até a Ford se retirar daquele mercado e outras mais curtas para serem enquadradas numa faixa de menor incidência de impostos na Índia, além de uma versão EcoBoost com turbo e injeção direta para o motor de 1.0L ser oferecida na maioria dos mercados no exterior enquanto no Brasil o mesmo 1.5L aspirado do Ka é atualmente usado em quase todas as versões, até seria possível dispor de uma carroceria mais compacta e que sofresse um pouco menos mesmo que tivesse que ser arrastada por um motor dde 1.0L aspirado se não fosse pela "obrigação" de preencher lacunas originalmente destinadas a modelos de outras categorias.

A chegada de concorrentes como o Volkswagen T-Cross, mesmo que somente com tração dianteira em contraponto à disponibilidade de tração 4X4 no EcoSport hoje restrita no Brasil à versão Storm, já foi suficiente para causar um impacto sobre a posição confortável que a Ford detinha no segmento de SUVs compactos. A maior aceitação do câmbio automático e a presença mais maciça do downsizing, tomando o exemplo do próprio T-Cross que já foi lançado somente com motores TSI de 3 cilindros e 1.0L ou 4 cilindros e 1.4L sempre com turbo e injeção direta, já contrasta com um eventual equívoco da Ford em nunca ter oferecido no Brasil a opção de câmbio automático para qualquer versão 4X4 do EcoSport mesmo que esse recurso seja essencial para que não encalhe em outros países, bem como o fato do motor Duratec Direct de 2.0L que também passou a ser exclusivo do Storm lançar mão só da injeção direta mas não do turbo. E apesar de que nos Estados Unidos esse mesmo motor também é o único a ser oferecido com tração 4X4, mesmo que possa ser visto como tecnicamente "inferior" ao EcoBoost de 1.0L que equipa as versões de tração dianteira por lá, acaba sendo desnecessariamente arriscada a estratégia da Ford nesse aspecto.
Pode ter quem alegue ainda ser conveniente oferecer somente motores de aspiração natural e manter o câmbio automático restrito às versões de tração simples, mas o atual cenário mais competitivo num segmento que chegou a ser uma zona de conforto para a sucursal brasileira poderia a princípio até ser mais propício a uma outra abordagem por parte da Ford. A própria desvirtuação do conceito de "carro popular", que alavancou a aceitação de motores de 1.0L enquadrados no conceito do downsizing para modelos de segmentos com pretensões mais prestigiosas, também tornaria mais suave uma transição para a era do turbo, embora também fosse conveniente considerar a versão EcoBoost do motor de 1.5L para atender às duas faixas de cilindrada atualmente abrangidas pela concorrência. E mesmo que se pudesse supor que o menor custo de reparos num câmbio manual e a maior facilidade para encontrar assistência técnica mesmo em localidades mais distantes de grandes centros também fizessem mais sentido num 4X4, o perfil essencialmente urbano do consumidor de SUVs "crossover" e até a maior aptidão dos câmbios automáticos a condições mais severas de carga e topografia devem ser levados em consideração.

Mas não se pode esquecer o contexto histórico que tem culminado nessa sequência de erros. Somada à excessiva dependência por motores V8 remontando ao início da produção de automóveis da Ford no Brasil com o Galaxie, houve a insistência no uso de uma versão de 6 cilindros do motor Hurricane proveniente do espólio da Willys-Overland no Maverick, com consequências desastrosas em seguida à eclosão das primeiras crises do petróleo durante a década de '70. Para utilitários como a F-400, que com a substituição do motor V8 a gasolina por um motor Diesel fornecido pela MWM passava a ser  denominada F-4000, não soaria tão difícil se readequar às prioridades do mercado diante da eclosão dos choques do petróleo, enquanto na linha de automóveis o único motor ainda competitivo em outra faixa de tamanho era o de origem Renault usado no Corcel, também proveniente do espólio da Willys em decorrência de acordos de cooperação a nível de Brasil e Argentina que foram mantidos no Brasil pela sucursal local da Ford, enquanto a operação argentina (IKA - Indústrias Kaiser Argentina) ficou com a própria Renault.

Mesmo tendo recebido atualizações de estilo e algumas melhorias pontuais na parte mecânica durante o ciclo de produção do Corcel e derivados como a substituição do motor Sierra pelo Cléon-Fonte que se tornou mais conhecido no Brasil como CHT, a dependência excessiva por uma única plataforma já desatualizada diante da concorrência que ia se acirrando no segmento dos carros médios levou a uma situação crítica que chegou a ser apontada como um pretexto para que a Ford eventualmente saísse do mercado brasileiro entre o final da década de '70 e o começo da de '80. Mesmo com a fabricação do Escort da 3ª geração européia tendo proporcionado mais competitividade durante a década de '80 por estar mais alinhado com a oferta dos principais mercados mundiais, vale destacar outro golpe de sorte com relação ao uso do motor Renault em versões nacionais do então "carro mundial" da Ford antes da implementação da joint-venture AutoLatina com a Volkswagen entre '87 e '96 que proporcionou o acesso aos motores Volkswagen EA827 "AP". Apesar de não ser tão cultuado por entusiastas e contar com menos oferta de acessórios e preparações, o CHT estava longe de ser um mau motor para um uso normal, e foi um dos motores que melhor se adaptaram ao etanol no auge do ProÁlcool.

Talvez o exemplo mais claro do quão desastrosa era a política de motores da Ford no Brasil ao longo das décadas de '70 e '80 tenha sido o Del-Rëy, que era basicamente uma reinterpretação do estilo do Granada Mk.II europeu adaptada à plataforma do Corcel para tentar suprir a falta tanto de um full-size quanto de um sedan médio mais moderno. Ainda que o CHT não deixasse de ser um bom motor, a cilindrada de apenas 1.6L não era párea para motores da Volkswagen e da Chevrolet que já atingiam entre 1.8L e 2.0L nos concorrentes mais próximos, antes que o Del-Rëy fosse beneficiado com a opção por versões de 1.8L do AP como resultado da AutoLatina. Além da dependência excessiva por uma única plataforma que tem sido uma constante na operação brasileira da Ford, o comodismo de ter passado tanto tempo sem motores de tecnologia própria numa faixa entre 1.0L e 2.0L que viria a se firmar como a mais importante a partir da década de '90 também pode ser creditada como um dos fatores que expuseram demais a posição de mercado da empresa a riscos, o que chega a soar ainda mais absurdo levando em consideração que o cenário de restrição a importações entre '76 e '90 criava uma espécie de reserva de mercado e facilitava o prolongamento do ciclo de produção de plataformas e motores antigos cujos custos de desenvolvimento e instalação de ferramental já estivessem amortizados.

Já durante a década de '90 com a febre dos "carros populares", pode-se creditar ao simples e confiável motor CHT numa versão de cilindrada reduzida para o limite de 1.0L a chance que a Ford teve de dar alguma continuidade à plataforma do Escort Mk.3/Mk.4 da década de '80 numa versão simplificada e denominada Hobby, inserindo-se num segmento então promissor com um investimento mínimo para ganhar terreno até a chegada do Fiesta "chorão" de produção nacional em '96 equipado com motores Endura-E de 1.0L ou 1.3L com 8 válvulas e Zetec de 1.4L com 16 válvulas importados da Espanha e montados no Brasil. Como o Endura não tinha uma configuração substancialmente diferente do CHT, e o Zetec tinha uma sofisticação excessiva diante da precariedade da assistência técnica disponível na época, o Fiesta podia ser considerado menos competitivo diante dos modelos de entrada oferecidos por outros fabricantes que não abriam mão dos motores produzidos localmente e o mais "à prova de burro" possível.

Considerando que em '96 a AutoLatina estava sendo encerrada, mas que a Volkswagen ainda chegou a usar motores CHT até nas primeiras versões de 1.0L do Gol bola já com injeção eletrônica (mesmo que ainda fosse monoponto), chega a ser surpreendente que tenha sido subestimado pela Ford durante a transição da filial brasileira de uma dependência excessiva por motores desenvolvidos por terceiros até o lançamento do motor Zetec-Rocam nas versões de 1.0L e 1.6L em simultâneo à remodelação do Fiesta em 2000 incorporando o estilo "New Edge" desenvolvido pelo francês Claude Lobo. De certa forma o mais próximo possível de um "sucessor espiritual" para o CHT, apesar de já ter comando de válvulas no cabeçote, por ser sincronizado com corrente selada ao invés de correia dentada como era mais usual na concorrência, era ao mesmo tempo considerado mais robusto e apontado como mais competitivo que os antigos CHT e Endura com comando no bloco cujos regimes de rotação mais estreitos não faziam frente à aptidão de motores como o AP para operar em alta rotação.

Mesmo em modelos médios, o Zetec-Rocam de 1.6L também acabou sendo uma tábua de salvação da Ford para se manter competitiva, inicialmente complementando mas por fim substituindo uma versão de 1.8L do Zetec inglês que foi usado nos últimos modelos do Escort e no Focus de 1ª geração feitos na Argentina. Deve-se levar em consideração também que o câmbio manual ainda era predominante em modelos dessa categoria no Brasil durante os ciclos de produção do Escort que foi até 2004 e do Focus original que se estendeu até 2008, e nesse caso como o câmbio automático ficava mais atrelado à opção de motor mais sofisticada disponível para o Focus que usou versões de 2.0L inicialmente do Zetec e finalmente do Duratec, e portanto consumidores com um perfil mais conservador já podiam se dar por satisfeitos com o motor mais básico. Logo, pode-se interpretar a decisão de oferecer um motor mais pé-duro desenvolvido especificamente para atender condições sul-americanas no tocante à precariedade de manutenção e à menor qualidade dos combustíveis e lubrificantes como um raro acerto.

Considerando que o grosso das vendas da 1ª geração do EcoSport contou exatamente com versões de 1.6L do Zetec-Rocam inicialmente a gasolina e posteriormente "flex" aptas à operação com etanol, e o modelo foi um destaque para que a operação brasileira da Ford recuperasse uma zona de conforto a partir de 2003, não deixa de ser surpreendente que o ciclo da produção dessa série de motores tenha se encerrado um tanto precocemente em 2015 com o fim da produção do Fiesta Rocam, apesar de que alguns concorrentes da época com projetos básicos mais antigos permaneçam em produção no Brasil. Há de se destacar a evolução na qualidade da assistência técnica independente, bem como o grau de exigência de uma parte expressiva do público consumidor que já olha com desdém para motores mais rústicos, mas abdicar de um motor efetivamente competitivo e com um custo de produção menor não deixa de ser algo questionável. Pode fazer algum sentido atribuir essa decisão à política "One Ford", que apregoa uma maior unificação entre as ofertas destinadas aos mercados americano e europeu, mas que também já tem se mostrado um tanto conflitante diante das necessidades e preferências de cada região.

Embora a produção nacional da Ford esteja cada vez mais se limitando a modelos com motor de 3 cilindros, o que não chega a ser um demérito, a dependência excessiva por uma única plataforma de automóvel para fazer volume de vendas que no momento é a missão do Ka tem uma relação de causa e efeito um tanto confusa mas indissociável de estratégias um tanto mal-formuladas no planejamento da linha de motores a ser disponibilizada. O apego a modismos como mais recentemente o dos soft-roaders para tentar reverter meio que às pressas o descaso que vem caracterizando a aparente inércia quando se faz necessário renovar o portfólio dos motores é outro aspecto questionável no modelo de negócios da Ford a nível de Brasil. Enfim, por mais que às vezes possa parecer difícil definir se um motor de concepção mais antiga ainda pode ser competitivo ou se é melhor partir para um novo projeto, é nítido que em alguns momentos a Ford falhou nessa missão e se colocou desnecessariamente em posições vulneráveis...

Um comentário:

Dieselboy sa Maynila disse...

Igual me sorprende que Ford siga así con respecto a los motores. Me acuerdo que en el Ford Fiera ensamblado en las Filipinas se usaba el motor Kent 1.3 del Escort y un Isuzu C190 como opción, antes de salir de las Filipinas durante el régimen de Ferdinand Marcos. Y ahora ya no hay ningun bantam como el Ka Figo en la linea de Ford para Filipinas, aún que estea cerca de China y iba a ser fácil importar desde allá en vez de Tailándia y EE.UU.

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