quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Uma observação sobre como o motor boxer da Volkswagen poderia ter sido melhor aproveitado desde a época do Fusca Itamar

Não é novidade que a volta do Fusca ao mercado de veículos novos entre '93 e '96 foi uma decisão de ordem mais política que técnica, levada adiante mais para agradar ao então presidente da República do que para atender à efetiva necessidade de uma parte do público consumidor por um veículo com as peculiaridades do Fusca. Um projeto já obsoleto para os padrões da indústria automotiva no segmento de entrada, requerendo mais mão-de-obra para a montagem e com uma maior quantidade de peças em comparação a modelos modernos dotados de estrutura monobloco, acabou se tornando mais um fardo do que um trunfo para a Volkswagen. Considerando ainda que mesmo tendo sido desenvolvida uma versão de 985cc quando o projeto do Fusca ainda estava começando na Alemanha, mas que acabaria sendo descartada já em 1942 por ter apresentado desempenho insatisfatório, o retorno às linhas de produção no Brasil acabou dependendo de uma extensão do benefício fiscal para motores de até 1.0L sem distinção por sistema de refrigeração de modo a abranger motores até 1.6L refrigerados a ar, medida que visava beneficiar especificamente o Fusca.

Na prática, o único outro veículo passível de receber o mesmo tratamento privilegiado sob o âmbito da tributação mais favorável sendo extensiva a motores refrigerados a ar até 1.6L era a Kombi, o que leva a crer que a produção do rústico motor boxer se justificava mais sob o aspecto comercial que do Fusca especificamente. Seria no entanto pouco provável que a Kombi pudesse exercer o mesmo apelo junto ao público generalista que se visava atingir com o programa do carro popular, e nem o tamanho relativamente compacto em proporção à capacidade de carga mudava a percepção já consolidada dos consumidores com relação ao utilitário. Portanto, tendo em vista que o Fusca era claramente defasado aos olhos de uma população cada vez mais urbanizada e a Kombi estava distante de ser tratada como um carro mais "normal", não deixa de ser intrigante que a Volkswagen tenha deixado de lado algumas possibilidades de explorar melhor o motor boxer como uma carta na manga. E com o Gol já liderando o mercado, chega a ser estranho que aparentemente não se tenha ao menos considerado a hipótese de fazer algo semelhante aos primeiros Gol BX que usavam o motor boxer refrigerado a ar inicialmente de 1.3L e depois justamente de 1.6L como foi delimitado para atender especificamente à obsessão do então presidente Itamar Franco por uma volta do Fusca.

O fato dos primeiros Gol 1000 ainda quadrados e produzidos entre '93 e '96 como o "Fusca Itamar" terem dependido do fornecimento do motor CHT pela Ford em função da joint-venture AutoLatina e da demora da Volkswagen em introduzir no Brasil a série de motores EA-111 é outro aspecto bastante peculiar e levaria a crer no boxer como um bom tapa-buraco enquanto um motor de 1.0L de produção própria não estivesse à mão. Naturalmente, uma parcela do público que buscava especificamente por um veículo que fosse inerentemente mais moderno que o Fusca (o que a bem da verdade não era nada difícil mesmo para um popular brasileiro da década de '90) iria acabar tendo um pé atrás com relação aos níveis de ruído do boxer, de modo que uma eventual releitura noventista do BX estaria sob o risco de ser rechaçada. Por outro lado, há de se considerar não só a percepção da cilindrada no Brasil como um fator de prestígio influenciada exatamente pelo uso como o principal critério para enquadramento numa faixa de mercado menos prestigiosa, mas também como a qualidade de combustíveis e outros insumos ou o cumprimento de planos de manutenção preventiva influenciariam a durabilidade de um motor mais sofisticado, e portanto o boxer talvez não estivesse já de todo inadequado a um hipotético uso no Gol ao menos enquanto vigorasse o benefício fiscal delineado especificamente para atender ao Fusca.

A chegada da 2ª geração do Gol em '94, com a AutoLatina ainda em vigência, foi acompanhada pela introdução da injeção eletrônica monoponto no motor CHT, que seguiu até '96 quando foi finalmente lançado no Brasil o motor EA-111 próprio da Volkswagen, que pôs um fim na dependência pela Ford no fornecimento de motores para as versões populares do Gol juntamente com o fim da AutoLatina. Tendo em vista que na mesma época o Fusca saía de linha definitivamente no mercado nacional, a princípio estava extinta a razão para tratar de forma diferenciada os motores refrigerados a ar no tocante à incidência de impostos, e portanto um eventual uso do boxer perdurando até o ciclo de produção do Gol "bola" pudesse vir a ser contestado pela concorrência por já estar mais tecnicamente próximo de outros hatches compactos que do Fusca. No entanto, o fato do motor boxer ser mais leve que o CHT, o EA-111 e o EA-827 "AP" normalmente usados no Gol "bola" talvez estivesse longe de ser uma má idéia, por ser menos propenso a causar um problema de trincas no túnel da transmissão que é muito comum nas gerações anteriores do Gol e nos outros modelos derivados das mesmas plataformas.

Também é importante mencionar versões de 1.0L e 16 válvulas do EA-111 que chegaram a ser usadas no Gol como uma opção de desempenho mais vigoroso na classe dos populares e que acabou sendo a única alternativa no caso da Parati. Como a maioria dos motores multiválvulas antigos, era frouxo em baixas rotações e tinha o pico de torque concentrado num regime que acaba tendo uso mais frequente no tráfego rodoviário, além de ser mais susceptível à formação de borra de óleo no cabeçote quando o lubrificante não atenda as especificações recomendadas. E de fato, o público-alvo do Gol e da Parati era mais acostumado a motores um tanto rústicos, o que incluía dessde a versão de 1.0L e 8 válvulas do EA-111 até os EA-827 "AP" de 1.6L, 1.8L e 2.0L que completavam a linha depois da Volkswagen abolir o uso do motor CHT com o fim da AutoLatina. Mas para condições normais de uso, não seria tão fora de contexto crer que o boxer refrigerado a ar de 1.6L ainda pudesse se sair mais adequado às necessidades e expectativas de consumidores com um perfil mais conservador que eventualmente se vissem obrigados a fazer o sacrifício de arriscar um motor multiválvulas em busca dum desempenho mais vigoroso mas não estivessem tão dispostos a seguir mais à risca o plano de manutenção ou usar um óleo sintético de boa qualidade ao invés do óleo mineral mais barato.

O fato da Kombi ter recorrido a partir de 2006 a uma versão de 1.4L do EA-111 na configuração flex a gasolina e etanol em substituição ao boxer de 1.6L que era oferecido exclusivamente a gasolina ou etanol, alegadamente motivado por alterações nas normas de emissões, poderia ter posto em xeque a viabilidade do motor antigo. A bem da verdade, apesar de um motor refrigerado a ar naturalmente ter uma emissão de ruídos maior por ter as camisas de cilindro mais expostas diretamente ao ambiente e não contar com o maior isolamento proporcionado pelo fluxo de líquido de arrefecimento e pela face externa do bloco, não seria tão difícil redimensionar o sistema de refrigeração para que apenas o ar e o óleo já dessem conta de proporcionar um controle mais preciso da temperatura nas mais diferentes condições de rodagem. De fato, seria algo mais desafiador na Kombi devido à configuração de motor traseiro já causar uma maior dificuldade na captação do fluxo de ar para refrigeração, mas no Gol por recorrer ao motor dianteiro esse problema já tem uma proporção muito menor. Dimensionando bem o radiador de óleo, eventualmente também substituindo a ventoinha de acionamento mecânico acoplada à correia do alternador por uma elétrica como se tornou padrão nos veículos com motor refrigerado a água, ainda seria viável atender às normas de emissões Euro-3 que teriam sido o pretexto para tirar o boxer de linha e até as atuais Euro-5 implementadas em 2012 no Brasil, proporcionando uma redução na duração da "fase fria" imediatamente após a partida e uma economia de combustível por não ter de enriquecer a mistura para compensar uma precariedade atribuída à refrigeração a ar. E com o motor atingindo a temperatura ideal de funcionamento mais cedo, o catalisador também fica mais eficiente, e quando se recorre ao etanol a marcha-lenta estabiliza mais rapidamente.
A princípio, se a Volkswagen tivesse insistido e levado adiante o motor boxer refrigerado a ar de 1.6L valendo-se da equiparação aos motores de 1.0L e refrigeração líquida para fins de tributação, seria de se considerar que o maior empecilho para a continuidade viesse a ser o fim do uso de plataformas de motor longitudinal em 2013 com o fim da produção não só da Kombi mas também do Gol G4 quando estava para entrar em vigor no ano seguinte a obrigatoriedade de freios ABS e airbag em automóveis 0km no Brasil. Especificamente no caso do Gol, cuja plataforma até previa a instalação desses ítens, a venda para frotistas ainda manteria uma escala de produção confortável se a Volkswagen não tivesse feito a opção a meu ver bastante equivocada de descontinuar o G4. Mas enfim, tendo em vista que a Volkswagen tende a atingir um público particularmente conservador tanto entre particulares quanto no mercado corporativo, o motor boxer ainda teria um potencial que não foi bem explorado...

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