terça-feira, 28 de março de 2023

Ford: em vias de se tornar uma Agrale com pedigree?

Um dos fabricantes que mais se destacaram em meio a tantos momentos históricos no Brasil, bem como em outros mercados mundo afora, a Ford já reinou absoluta especialmente no segmento de pick-ups, e a F-1000 é um bom exemplo do quão poderosa a empresa foi no mercado brasileiro. Embora a Ford tenha cometido alguns erros no tocante à linha de motores enquanto manteve a operação industrial no Brasil, a forma como o outsourcing costumava ser relevante à medida que motores Diesel foram consolidados na preferência do público facilitava contornar essa deficiência no caso da F-1000 quando dispunha dos ainda hoje cultuados motores MWM de fabricação brasileira, que predominavam enquanto os motores a gasolina de fabricação própria da Ford eram importados da Argentina. É natural alguma similaridade do processo produtivo básico de uma caminhonete tradicional e o que se fazia na época dos calhambeques, facilitando um comodismo da Ford em torno dos utilitários e que tem sido ainda mais relevante agora.
Levando em consideração também uma defasagem técnica entre os modelos brasileiros e os americanos das caminhonetes full-size da Ford, interrompido somente no fim de '98 quando houve a substituição da F-1000 pela F-250, é inevitável fazer alguma comparação com as estratégias de outros fabricantes tanto de origem estrangeira como a própria Ford quanto brasileiros e especializados no ramo dos utilitários a exemplo da Agrale. Enquanto a F-1000 brasileira ficava mais restrita ao mercado local e à exportação a países vizinhos como a Argentina e o Uruguai a partir da consolidação do Mercosul na década de '90, a F-250 que no Brasil sempre contou com motores mais austeros e câmbio manual chegou a ter opções de motores V8 tanto a gasolina quanto turbodiesel exclusivas para exportação à Austrália e Nova Zelândia, além da cabine dupla e da tração 4X4 também terem chegado antes a mercados externos que incluíam a África do Sul onde contava só com o motor turbodiesel MWM Sprint 6.07 TCA de 6 cilindros em linha e câmbio manual até 2005. Como seria de se esperar, a necessidade de atender a padrões mundiais fez a linha de motores para versões destinadas à exportação ser mais ampla, e a princípio tenha sido o único motivo para a defasagem técnica no tocante à configuração de chassi e a aparência ter sido interrompida até o encerramento das exportações para regiões de mão inglesa em 2005.
Além do mercado de pick-ups full-size no Brasil ter retraído à medida que os modelos superavam uma faixa de peso bruto total de 3500kg que é o máximo permitido para a condução por detentores da CNH categoria B, e passavam a ser enquadradas como caminhões no Brasil e portanto sujeitas a restrições ao tráfego em alguns centros urbanos e devendo ser observados limites de velocidade máxima menores em estrada, a mudança do perfil de uso deixando de ser mais estritamente profissional ficando mais voltado ao lazer também desfavorecia motores mais rústicos que então predominavam nas versões brasileiras. O motor Cummins com "só" 4 cilindros substituindo o MWM em 2005 e acompanhando a F-250 até 2011 quando a Ford parou de produzir caminhonetes full-size no Brasil contrastava com o maior alinhamento de outros modelos ao que já se oferecia em mercados internacionais no segmento, além da consolidação das pick-ups médias no Brasil desde a década de '90 em resposta à reabertura das importações. Apesar de uma parte do público brasileiro ter ficado praticamente sem opções de veículos essencialmene mais voltados a serviço pesado e com um custo operacional menor que o de modelos destinados ao lazer, fica mais fácil explicar até uma certa semelhança entre a atual situação da Ford e a estratégia da Agrale.

Um curioso precedente do que me parece uma "agralização" da Ford foi o antigo sucesso no segmento de pick-ups compactas derivadas de automóveis, com a Pampa e posteriormente a Courier que tiveram uma maior popularidade junto a operadores mais voltados ao uso estritamente profissional enquanto as concorrentes agradavam mais também a particulares, e portanto até a defasagem que apresentavam nos respectivos encerramentos de produção em '97 para a Pampa e 2013 para a Courier parecia irrelevante. A política de One Ford implementada no rescaldo da crise hipotecária americana de 2008 inviabilizou o investimento em novos modelos da categoria, cujo maior foco era o Brasil e numa escala muito menor a África do Sul, e no tocante a utilitários de um modo geral a moda de SUV ficava mais viável em escala global também entre modelos compactos, enquanto nas pick-ups a preferência por modelos maiores foi decisiva para a Ford adotar uma abordagem diferente. E naturalmente, o fim da produção de carros pela Ford no Brasil, onde predominavam modelos compactos no catálogo também prejudicaria a economia de escala, considerando que estruturas semimonobloco como a da Pampa ou monobloco propriamente dita como a da Courier acabam dependendo de ferramentaria mais específica em comparação ao que se usa na produção de chassis para outras categorias de veículo.

A continuidade de produção na Argentina, onde é feita a Ranger enquanto todo o restante da linha Ford é importado como acontece no Brasil, também fomenta comparações com a Agrale, pela dependência por um modelo utilitário cujo processo de produção é basicamente o mesmo, em que pesem diferenças entre alguns subconjuntos como suspensão e direção ou o perfil das longarinas, que nas gerações mais recentes de caminhonetes tem predominado o que se conhece por boxed-frame com longarinas de seção quadrada em contraste com a seção aberta das longarinas mais frequentemente usadas em caminhões e chassis para ônibus. Concentrar esforços no mercado de utilitários, e assim atender com mais facilidade a clientes institucionais/corporativos ou produtores rurais na modalidade de vendas diretas ao invés de priorizar o público generalista no varejo, é outro ponto que tem sido digno de nota desde que a Ranger passou a ser o modelo com maior volume de vendas de toda a linha Ford no Brasil com o encerramento da produção nacional e a retirada do segmento de carros compactos. Por mais que à primeira vista soe exagerado comparar um modelo mundial que é a Ford Ranger aos utilitários Agrale, desenvolvidos com uma maior ênfase no Brasil e na Argentina mas que também acabam alcançando outras regiões através de exportação, os processos produtivos guardarem uma certa semelhança e a busca da Ford para firmar uma imagem de "especialista" em utilitários como a Agrale é reconhecida tornam inevitável classificar a atual estratégia da Ford como ser uma Agrale com pedigree.

Até o recente relançamento dos furgões Ford Transit no Brasil, agora montado em CKD pela Nordex no Uruguai, me remete à experiência da Agrale com o antigo Furgovan, com as devidas ressalvas tendo em vista que a linha Transit é um projeto mundial em contraste com o evidente regionalismo que norteou o Agrale Furgovan, além da oferta de versões de rodado simples e PBT dentro do limite de 3500kg para a condução por detentores de CNH categoria B ter se tornado um fator mais relevante para o sucesso de furgões modernos em um mercado cada vez mais competitivo. Sem entrar no mérito de diferenças entre motores turbodiesel de diferentes gerações e os sistemas de controle de emissões que sejam associados a cada, outro ponto a se destacar é a linha Transit chegar ao Brasil somente com tração traseira mesmo que tenha versões de tração dianteira na Europa, tornando inevitável uma comparação com a concepção mais tradicional da linha Agrale. No caso da Ford, a possibilidade de compartilhar mais elementos como os câmbios manual de 6 marchas e automático de 10 marchas com as pick-ups de tração traseira ou 4X4 acaba favorecendo a logística entre modelos fabricados na Argentina e no Uruguai, enquanto a Agrale mesmo tendo deixado de lado o segmento de furgões usa basicamente a mesma configuração do Furgovan nos caminhões e chassis para ônibus que são as principais especialidades fora dos segmentos de tratores agrícolas e de viaturas militares que tem sido os mais destacados.

A idéia de uma maior percepção de valor agregado que vem sendo atribuída aos utilitários de diversas categorias é algo que tem pesado favoravelmente na atual estratégia da Ford, tanto no caso dos Estados Unidos onde os SUVs como o Bronco Sport conquistaram uma participação de mercado considerável por serem classificados como "caminhões leves" e ficarem sujeitos a normas mais lenientes de consumo de combustível e emissões quanto em outras regiões onde a proposta de veículos que externalizem uma imagem de "estilo de vida" agrada a uma parte considerável do público generalista mesmo em grandes centros urbanos, mesmo que configurações hoje consideradas um padrão em carros mais austeros sejam incorporadas também a essa categoria como o motor transversal e a tração dianteira ou integral, além da estrutura monobloco. A economia de escala ao compartilhar alguns subconjuntos com outros modelos é relevante a nível mundial, mesmo que tenham uma presença mais territorializada em diferentes regiões, e a Ford manter uma oferta de carros generalistas com configurações mais tradicionais de carroceria na Europa e na China parece até justificar essa estratégia, ao mesmo tempo que faz parecer menos próxima de se tornar uma Agrale de luxo. O caso específico do Ford Bronco Sport, com a produção concentrada no México de onde vai sobretudo para os Estados Unidos e Canadá sem impostos de importação devido ao NAFTA e chega ao Brasil com um benefício semelhante proporcionado por acordos bilaterais, acaba por enfatizar que a Ford tem de fato seguido uma estratégia semelhante com a Agrale, regionalizando as prioridades e focando nos respectivos mercados domésticos (Estados Unidos para a Ford e Brasil para a Agrale) com pontuais adequações a outros mercados onde pareça sustentável manter operações tanto de produção quanto de importação.

Quanto à retirada da Ford do setor de caminhões tanto no Brasil quanto em outros países da América do Sul, onde teve modelos marcantes como o "sapão" na época que a Série F era mais apreciada e o Cargo de 2ª geração que havia sido desenvolvido com participação da Otosan que é associada à Ford e voltada à produção de utilitários na Turquia, o mais curioso é a Ford ter voltado a vender caminhões na Europa Ocidental pouco antes do encerramento da operação brasileira nesse mercado, e justamente o Cargo de 2ª geração ter marcado esse retorno. Para um fabricante que cada vez mais tenta firmar uma imagem de especialista em utilitários, o mais lógico seria ter mantido a venda de caminhões no Brasil e nos países vizinhos que eram supridos pelos modelos de fabricação brasileira, e apesar da operação turca até poder eventualmente expandir ainda mais a presença global da Ford Trucks, certas peculiaridades da produção brasileira como o outsourcing de motores junto à Cummins ainda podiam ser mais favoráveis em alguns mercados. Enfim, mesmo considerando os diferentes segmentos e regiões que atendem, a Ford vem na prática se posicionando praticamente como uma Agrale com pedigree...

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