sexta-feira, 28 de março de 2014

Uma reflexão sobre desafios da "renovação de frota"

Não é de hoje que a tão comentada "renovação de frota" gera reações um tanto extremas quando é posta na pauta de discussões. De um lado aqueles que demonizam alguns veículos apenas em função da idade, esquecendo a importância que podem ter apresentado para o desenvolvimento brasileiro em algum determinado momento, ou mesmo a nostalgia que possam despertar, enquanto outros levantam objeções embasadas por diversos motivos, desde a inviabilidade em substituir um modelo específico por outro com capacidades e aptidões semelhantes sem um grande impacto financeiro para o proprietário/operador ou mesmo por considerar outros tópicos como mais prioritários. De quê adiantaria, por exemplo, o governo tentar forçar o sucateamento de um Fiat Fiorino da primeira geração apenas pela idade e negligenciar a manutenção de ruas e estradas? É justo visar apenas uma maior arrecadação de impostos sobre a propriedade e circulação de veículos automotores e não reverter isso em infra-estrutura e engenharia de tráfego decentes que por conseguinte levariam até mesmo a uma redução nas estatísticas de acidentes?

Um aspecto discutido à exaustão é a emissão de poluentes: de fato, modelos de concepção mais antiga tem limitações nesse sentido, mas ainda assim seria injusto deixar de reconhecer alguns aspectos positivos no tocante à adaptabilidade a combustíveis alternativos. Por exemplo, até um Mercedes-Benz 200D da segunda metade da década de 70, facilmente adaptável não só ao biodiesel mas até ao uso de óleos vegetais brutos como combustível, já pode ser considerado mais limpo que um Toyota Prius que, além de ficar mais restrito à gasolina e eventuais gambiarras para usar etanol ou gás natural, tem na maior complexidade técnica um agravante na hora de descartar e reprocessar alguns componentes ao final da vida útil, desde elementos mais triviais como velas de ignição até a bateria tracionária e o motor elétrico...

De um modo geral, é perfeitamente compreensível que automóveis de segmento superior, mesmo aqueles menos prestigiados pelo consumidor brasileiro como o Daewoo Ace/Super Salon, continuem despertando algum interesse depois de "velhos", tanto pela percepção de uma melhor qualidade quanto pela presença de equipamentos de conforto e segurança que não faz feio diante do que se fabrica hoje no Brasil. O preço de um usado mais equipado em comparação com um "popular" depenado faz toda a diferença nesse caso...

Considerando muitos aspectos que vão desde os altos custos de licenciamento até as restrições ao uso de motores a diesel baseados arbitrariamente em capacidade de carga, passageiros ou tração, um único veículo mais antigo que seja adequado a diferentes necessidades que vão desde o uso familiar, particular ou recreacional até o uso em serviços (pedreiros, serralheiros, encanadores, entre outros) como uma Ford F-1000 com cabine dupla artesanal acaba sendo mais atraente para alguns usuários do que qualquer hatch "popular" 0km que, além das capacidades mais modestas, chega a custar mais caro. O preço muito alto para qualquer utilitário 0km com capacidades semelhantes também faz com que o consumidor fique entre a cruz e a espada quando está diante de um orçamento limitado, e acabe pendendo mais para um antigo.
A isenção de IPVA para veículos com mais de 15 anos de fabricação também pesa favoravelmente, bem como o fato do referido imposto ser atrelado ao valor de mercado atribuído pela Secretaria da Fazenda, normalmente com base na tabela da FIPE. É exatamente aí que tem se originado uma das polêmicas mais recentes: sabendo de intenções do governo em alterar a tributação sobre a frota circulante a partir de 2017, quando está prevista a implementação da próxima etapa do programa Inovar-Auto, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA) apresentou uma proposta para que os antigos passassem a ser sobretaxados em relação aos novos, com a expectativa de incrementar artificialmente o mercado. No entanto, tal medida pode ser vista como um tiro no pé, ao abrir precedentes para um "apartheid automotivo". Logo um governo que se vangloria, entre outros pontos, de "democratizar" o acesso ao crédito (estimulando o endividamento da população mais pobre sob um falso pretexto de ascensão social), estaria se contradizendo ao tentar varrer para baixo do tapete um bem que acaba sendo adquirido às custas de muito esforço e criando dificuldades para o cidadão que deseje escolher o veículo que mais se enquadre nas suas preferências pessoais e estilo de vida, além daqueles que não se desfazem do "velhinho" por atender melhor a alguma necessidade mais específica...
Para a indústria, o desafio também é bastante complexo: diversos modelos antigos, tanto nacionais como o Gurgel Supermini BR-SL quanto importados como o Daihatsu Cuore, podem ser considerados tecnicamente superiores aos "populares" atualmente oferecidos no mercado brasileiro em alguns aspectos. Mesmo que alguns dispositivos de segurança como airbags e freios com ABS não fossem tão comuns na época que esses modelos eram disponíveis como 0km, o Gurgel apresenta uma estrutura bastante sólida e melhor dimensionada às condições de rodagem terceiro-mundistas do que versões simplificadas de projetos europeus atualmente predominantes, e no caso do Daihatsu cabe destaque à qualidade construtiva e às médias de consumo que podem rondar facilmente a faixa dos 20 a 25km/l que nenhum "popular" mais recente com motor "flex" consegue alcançar sem maiores sacrifícios, e em ambos apesar das dimensões mais modestas até mesmo que as de um Ford Ka o aproveitamento do espaço interno é exemplar. Tentar convencer o proprietário de um modelo desses a substituí-lo por um 0km disponível regularmente no mercado brasileiro não parece uma tarefa tão fácil...

Caso a prioridade fosse mesmo o interesse em restringir a circulação de "sucatões" em estado inadequado de conservação e manutenção que realmente colocam em xeque a segurança viária, ao invés da gana arrecadatória que vem norteando a administração pública brasileira, bastaria uma política de inspeção veícular clara e objetiva. Cabe recordar, no entanto, que esse cenário não seria tão favorável quanto a ANFAVEA possa supor, pois a migração de usuários dos automóveis para as motocicletas tenderia a se intensificar, devido aos menores custos de aquisição, operacionais e de manutenção. Tal fenômeno já pode ser observado na maior popularização da motocicleta como alternativa aos precários serviços de transporte público oferecidos nas principais regiões metropolitanas, e também no interior onde chega a ser quase inexistente. Embora um carro ainda seja considerado mais desejável que a moto pela maior parte do público brasileiro, no caso de uma renovação de frota "por decreto" seria até previsível que o cidadão forçado a se desfazer de um Fiat 147 tivesse menos dificuldade para absorver o impacto financeiro da aquisição de uma motocicleta de baixa cilindrada e um side-car que o de um carro "popular" 0km...
Na prática, para que a "renovação de frota" seja mesmo implementada de forma condizente à realidade econômica e social brasileira, muitos outros fatores além do financiamento a perder de vista e do parasitismo fiscal devem ser levados em conta, para que possa haver de fato uma boa adequação às necessidades e condições operacionais.

2 comentários:

Cézar disse...

Os carros novos estão cada vez menos interessantes, e cada vez mais caros. Isso atrapalha mesmo qualquer plano para uma renovação da frota. Se for assim é mais fácil eu vender meu uno 93 e pegar uma biz mesmo.

Joacir disse...

Posso garantir a você que o problema é o povo brasileiro que é igual agulha, levando no buraco mas não perde a linha. Quem vai e compra um carro velho achando que não vai estar pagando tanto imposto acaba se lascando na hora de pagar a conta da gasolina. E ainda criticavam os milicos...

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